Sandro William Junqueira
Um Piano para Cavalos Altos
O corvo gralhou duas vezes
As luzes das lanternas oscilam nas mãos dos militantes em busca de um trilho de pegadas. Os cavalos avançam, lentos, torneando os obstáculos em ziguezagues. Vê-se a noite entre os ramos, como tudo está vazio.
No Verão sabia-se quais eram os abetos, as faias, as bétulas, ou pinheiros. Mas agora, em pleno Inverno: apenas um labirinto de troncos calcinados que liga a neve às nuvens cinzentas.
O corvo gralhou ao vê-los chegar à clareira. Abandonou o chão. Bateu asas rumo ao telhado da cabana abandonada. Levava uma lasca de carne no bico córneo. Arranjou poiso no telhado junto da chaminé desactivada. Ficou a observar os homens.
Os três militares desmontaram perto da neve vermelha. Numa pausa de nuvens, a lua surgiu e iluminou o cenário. O Militar Coxo avançou com o cão da dor a morder a perna. Passo pesado, passo leve. Apontou a lanterna. Contornou o cadáver sem conseguir cheirar a morte. O frio cristalizara o fedor descarado. Os outros dois, tolhidos, metros atrás, não largaram as rédeas: a desculpa de acalmar os cavalos.
A perna direita mais uma vez não se enganara. Ali estava: a coisa grande. Encontrado descosido, o jovem militar desaparecido. Faltavam-lhe as mãos, o nariz, as orelhas, os olhos, parte de uma perna e um pé. No abdómen, um buraco vazio, sem vísceras. Só era reconhecível pelos farrapos do uniforme e a estrela de metal, símbolo do Governo, que se salvara, indigesta e dura, dos dentes da violência.
Já não havia corpo, inteireza.
Um vento cruel uiva oriundo das montanhas voltadas a norte. Parece afinar um violino. Roça as fileiras dos troncos, as agulhas inflexíveis e todo aquele frio.
Apesar do horror da situação, o Militar Coxo verificou como era bela a neve vermelha. O sangue vai bem com o branco, admitiu.
Por fim, e após o corvo gralhar novamente, voltou-se e encarou os cobardes. Gritou:
É ele. Encontrámo-lo.
Lisboa: Caminho, pp. 17-18.
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