Mafalda Ivo Cruz
A Vida é Sonho
[excerto do conto]
«Tenho aqui estas páginas. Fazem-me lembrar a cauda de um pavão. Vou ter de lhe arrancar as penas.»
Dias de sol.
– É que tenho uma mancha num pulmão, sabe? Não me deixam entrar no Curry Cabral por causa desta sina – fala-me pelo postigo da porta que deixei aberto, sorri, um grande sorriso sem dentes, atira a cabeça para trás.
– Tome – estendo-lhe uma moeda e fecho o postigo. Sei que estás perto do céu.
A rua desce, estreita, com passeios íngremes, linhas curvas. Roupa estendida às janelas, gritos preguiçosos. «Fernando, Fernando, és tu?» Alguém que fala para um telemóvel. Está sol. Jogam às cartas aqui mesmo em frente à minha porta. Tudo é inocente. Ou parece. Porquê hoje? Anjo, diz-me.
Nunca sei a que horas vai passar o meu vizinho que pede esmola. E depois corre para o Bairro Alto, para a esquina onde estão os vendedores, os dealers. Vai veloz com o sol a queimar-lhe a pele como se fosse iluminado pelo Espírito Santo. E eu gosto que a vida seja assim. Sangrenta.
«Isto é sangue, é uma marca de sangue.» Mas não era. Era tinta encarnada que tinha manchado o passeio diante da loja das restauradoras de móveis. Devem ter sido elas. São três raparigas.
A mancha ficou ali. Que irá acontecer hoje? Misericórdia, porque havia de viver com um escritor? Despediu-se e virou a esquina. Foi ontem à noite, quando a lua estava encoberta.
«Vou ter de as arrancar.»
Insistiu muito.
Sim? Que é que isso me interessa? Ou já te passaste da cabeça? Esquece. Esquece toda a minha vida, anda, vai lá à tua que se faz tarde.
«Vou ter de as arrancar.» Então vai lá, homem! Pensas que fazes falta? Porque em todas as vidas se faz tarde. Porque hoje.
«Hoje não» - pedi-lhe.
E ele insistia, insistiu muito, mas e não quis saber.
[…]
Cruz, Mafalda Ivo (2003). A Vida é Sonho. In João de Melo et al, Histórias para
Ler à Sombra: Contos (pp. 91-109). Lisboa: Publicações Dom Quixote.
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