terça-feira, 31 de maio de 2011

Manuel da Fonseca, "Mataram a Tuna"

Nos Domingos antigos do bibe e pião
saía a Tuna do Zé Jacinto
tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim.

Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve.
o burro da nora da Quinta Nova
espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata!
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.

Quem não sabia aquilo de cor?
A gente cantava assobiava aquilo de cor...
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar...)
que eu sabia de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!

Entanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
- que era indecente aquela marcha
parecia até coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.


Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo a rua enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!
Meus companheiros antigos do bibe e pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretarias do comércio.
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem vida
sem nada
mais que o sossego das falas brandas...
- onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!

Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita
despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico
como era a Tuna do Zé Jacinto
tocando a marcha Almadanim!


Manuel da Fonseca, Obra poética, Lisboa, Caminho, 1984 (7ª ed.), pp. 129-131. Publicado pela 1ª vez em 1941, no volume Planície, do Novo Cancioneiro.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Luís Afonso, Cartoon da série "Bartoon"

Cartoon da série Bartoon de Luís Afonso, publicado no Público em 1993. In Luís Afonso (2003). 10 Anos Bartoon. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
Clique na imagem para ampliar.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Mito Cherokee, "Como foi feito o mundo"

Fragmento de “Como foi feito o mundo”, mito Cherokee. In Miguel Castro Henriques (Org. e Trad.) (1997). O Sopro das Vozes: Textos de Índios Americanos. Lisboa: Assírio & Alvim, p. 69.

Clique na imagem para aumentar.

Pode saber mais na webpage da American Indian Heritage Foundation , neste endereço.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

José Saramago, "A minha subida ao Everest"


Não haverá no deserto uma súbita ascensão que de longe ainda precipite a vertigem ímpar que é o lastro denso que nos justifica? Por outras palavras, e mais simples: não seremos todos nós transformadores do mundo? Um certo e breve minuto da existência não será a nossa prova, em vez de todos os sessenta ou setenta anos que nos couberam em quinhão?
Mal é se vamos encontrar esse minuto num passado longe, ou no momento não temos olhos para outras ascensões mais próximas. Mas talvez haja aí uma escolha deliberada, consoante o lugar onde falamos do nosso deserto pessoal ou os ouvidos que nos escutam. Hoje, por exemplo, seja qual for a razão, estou a ver, à distância de trinta e muitos anos, uma árvore gigantesca, toda projectada em altura, que parecia, na lezíria circular e lisa, a haste de um grande relógio de sol. Era um freixo de couraça rugosa, toda fendida na base, e que desenvolvia ao longo do tronco uma sucessão de tufos ramosos, como andares que prometiam uma escada fácil. Mas eram, pelo menos, trinta metros de altura…
Vejo um garoto descalço rodear a árvore pela centésima vez. Ouço o bater do seu coração e sinto-lhe as palmas húmidas das mãos e um vago cheiro de seiva quente que sobe das ervas. O rapazinho levanta a cabeça e vê lá no alto o topo da árvore que se agita lentamente como se estivesse caiando o céu azul.
Os dedos do pé descalço firmam-se na casca do freixo, enquanto o outro pé balouça o impulso que fará chegar a mão ansiosa ao primeiro ramo. Todo o corpo se cinge contra o tronco áspero, e a árvore decerto ouve as pancadas surdas do coração que se lhe entrega. Até ao nível das outras árvores antes conquistadas, a agilidade e a segurança alimentam-se do hábito. Mas, a partir daí, o mundo alarga-se subitamente, e todas as coisas, até então familiares, se vão tornando estranhas, pequenas, é como um abandono de tudo – e tudo abandona o rapaz que sobe.
Dez metros, quinze metros. O horizonte roda devagar, e cambaleia quando o tronco, cada vez mais delgado, oscila ao vento. E há uma vertigem que ameaça e não se decide nunca. Os pés arranhados são como garras que se prendem nos ramos e não os querem largar, enquanto as mãos buscam frementes a altura, e o corpo se contorce contra o corte vertical da árvore. O suor escorre, e de repente um soluço seco irrompe à altura dos ninhos e dos cantos das aves. É o soluço do medo de não ter coragem. Vinte metros. A terra está definitivamente longe. As casas rasteiras são insignificantes, e as pessoas é como se tivessem desaparecido, e de todas apenas restasse o rapaz que sobe – precisamente porque sobe.
Os braços já podem cingir o tronco, as mãos já se unem do outro lado. O topo está perto, oscilando como um pêndulo invertido. Todo o céu azul se adensa por cima da última folha. O silêncio cobre a respiração arquejante e o sussurro do vento nos ramos. É este o grande dia da vitória.
Não me lembro se o rapaz chegou ao cimo da árvore. Uma névoa persistente cobre essa memória. Mas talvez seja melhor assim: não ter alcançado o pináculo então, é uma boa razão para continuar subindo… Como um dever que nasce de dentro e porque o sol ainda vai alto.

Fragmento de “A minha subida ao Everest”,
in José Saramago (1973), A bagagem do viajante.
Lisboa: Editorial Futura, pp. 14-16.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Reportagem do lançamento da Acção



Percorra também a reportagem fotográfica neste endereço.

Florbela Espanca, "Árvores do Alentejo"

Horas mortas... curvadas aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água! !


Florbela Espanca (1991). Árvores do Alentejo. In Sonetos. , (24.ª edição). Venda Nova: Bertrand Editora, p. 151.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

António Lobo Antunes, "Desenhar o sol"

VISÃO 10:31 Quinta feira, 18 de Mar de 2010
Apetece-me desenhar o sol a sorrir. Apetece-me desenhar uma menina ao lado de uma árvore grande e a menina ser maior do que a árvore. Apetece-me desenhar uma casa com uma varanda e na varanda flores de caules compridíssimos, até ao alto do papel. Apetece-me desenhar um homem cheio de botões no casaco. Apetece-me desenhar seja o que for em vez de escrever esta crónica. Vou começar um livro em abril, no dia oito, e dá-me medo começar um livro, passar dois anos, a treze horas por dia, naquilo, a acordar com ele, a adormecer com ele. Apareceu-me o título logo, coisa nova para mim, andava eu a trabalhar no plano, que são quatro folhas de papel de agenda cheias de gatafunhos e setas, a maior parte dos quais ilegíveis. Aliás não é um plano, antes coisas dispersas que talvez se condensem. Mas depois o livro em si não terá nada que ver, ou pouco terá que ver, com os gatafunhos e as setas. Serve para ir habituando a mão, agora destreinada, a tropeçar no papel. O meu material são cores, imagens, sons, um ou outro nome, tralha ao acaso, farrapos. Faço-o de insignificâncias que crescem e se vertebram a pouco e pouco segundo leis misteriosas. Depois desfaço. Depois faço de novo. Depois limpo. Depois torno a limpar. Depois acabo e nunca mais o quero ver. Estes últimos tempos tenho lido. De tudo, por puro vício, e sinto-me desocupado, inútil. Os outros trabalham e eu para aqui, à boa vida. Que raio de expressão, boa vida. Tem sido boa, a minha vida? Pareço um estabelecimento de relojoeiro com centenas de mostradores em horas diferentes. De vez em quando badaladas, de vez em quando um cuco a abrir uma portinha de madeira, a surgir de repente, a dobrar-se em vénias, a soluçar, a fechar a portinha, a sumir-se. Amanhã, vinte de fevereiro, é um dia amargo. Relógios gordos, pomposos, de caixa de vidro, relógios feios como a palavra neurastenia. Um piano a um canto da memória, com um metrónomo no tampo. Apetecia-me ter aqui uma ampulheta e observar a areia a cair. Uma frase de Hesse vem-me à cabeça, sem motivo: "É estranho caminhar no nevoeiro: as árvores não se conhecem umas às outras." Vem-me à cabeça e fica, às voltas: as árvores não se conhecem umas às outras. Em casa da Zezinha dei com uma moldura tão feia que se tornava bonita. Três irmãs lá dentro, por ordem de idade, e eu pegado à do meio, com doze anos. A seguir cresceu, a seguir pariu de mim, a seguir meteram-na numa caixa. E as árvores, que não se conhecem umas às outras, não param de falar.
Nunca lhes disse mas sinto-me bem com as minhas filhas: são três também. Falo pouco, fico calado, a sentir. Dizer o quê? Se pudesse abrir o peito às pessoas e mostrar o que está dentro. Quanto mais gosto das pessoas mais emudeço. As centenas de ponteiros não descansam. Se carregar numa tecla do piano ouvir-se-á alguma coisa? Jantei do outro lado da rua e voltei para casa. Na televisão pegada ao tecto as notícias, fornecidas por um senhor que produz romances. Devia ser obrigatório produzir romances: não faz barulho, é barato e mantém os autores ocupados. Se compusessem era um chinfrim, se pintassem um pivete e tudo sujo à volta. Será que as árvores não se conhecem mesmo umas às outras? Com o frio que está devia haver mantas para aquecer os joelhos das casas.
Há bocadinho apetecia-me desenhar o sol a sorrir, agora não sei o que me apetece. Que silêncio. Gostava de ouvir barulho de saltos de mulher no chão, a sua maneira de vestirem de gestos o interior das salas. Não me caía mal um aceno agora, a sombra de uma voz. De manhã a sombra da voz está no lado esquerdo delas, à tarde no direito. O mistério dos seus cabelos que me faz ter saudades do mar. Dia oito de abril. O sorriso da senhora do dono do restaurante enche-lhe a cara toda: basta sorrir para ficar agosto. Quando vista de lado era um agosto, quando vista de frente era um abril: olha, ainda me recordo do poeta Manuel Bandeira. Não esqueço nada: é o meu pior defeito. Memórias, remorsos, gente, o homem que em Angola me respondeu, à beira da picada, ao perguntar-lhe se a fazenda Pecagranja era perto:
- É perto mas é longe
e eu de boca aberta com tanta sabedoria. Um camponês esfarrapado a falar assim. Trazia o borrego preso por uma corda atada não ao pescoço, aos testículos. Se nos atam pelos testículos obedecemos que é uma limpeza. Tudo é perto mas é longe, amigo, desculpa a minha estupidez. Carta de um outro a um primo que lhe pedia cem escudos: perdoa não mandar os cem escudos mas já fechei o envelope. O que aprendi em África, meu Deus. E lá vêm as mangueiras, enormes, a longa, densa fila de mangueiras ao crepúsculo. Quero desenhar o sol a sorrir. Quero desenhar cerejas azuis como a Zezinha em pequena, numa folha de papel que emoldurei. Quero desenhar-me a mim, de chapéu de coco, polainas e bigode retorcido. Quero que não haja noite. Ou não haja manhã e me arranquem ao sono como quem puxa um adesivo horrível de uma zona com pêlos. Quero que me toquem, nem que seja com um dedo no ombro. Quero voltar da mata para sempre e ficar aqui sentado a olhar para vocês, de órbitas redondas como pires, como aquele negro velho, acocorado numa pedra ao centro da aldeia desfeita, indiferente às cabras mortas e à cinza, a chupar, de tempos a tempos, um pobre cigarro apagado.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Jorge Sousa Braga, "as árvores e os livros"

As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.

E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.

As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».

É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.
 
Jorge Sousa Braga   
Herbário, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999

quarta-feira, 4 de maio de 2011