terça-feira, 30 de abril de 2013

Antero de Quental


Sonho Oriental


Sonho-me às vezes rei, nalguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite é balsâmica e fulgente
E a lua cheia sobre as águas brilha...

O aroma da magnólia e da baunilha
Paira no ar diáfano e dormente...
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com finas ondas de escumilha...

E enquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto num cismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,

Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descansas debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.

Quental, Antero de (1991). Poesia Completa
(Vol. 1). [Lisboa]: Círculo de Leitores. p. 206.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Mafalda Ivo Cruz

A Vida é Sonho
[excerto do conto]

       «Tenho aqui estas páginas. Fazem-me lembrar a cauda de um pavão. Vou ter de lhe arrancar as penas.»
       Dias de sol.
       – É que tenho uma mancha num pulmão, sabe? Não me deixam entrar no Curry Cabral por causa desta sina – fala-me pelo postigo da porta que deixei aberto, sorri, um grande sorriso sem dentes, atira a cabeça para trás.
       – Tome – estendo-lhe uma moeda e fecho o postigo. Sei que estás perto do céu.
       A rua desce, estreita, com passeios íngremes, linhas curvas. Roupa estendida às janelas, gritos preguiçosos. «Fernando, Fernando, és tu?» Alguém que fala para um telemóvel. Está sol. Jogam às cartas aqui mesmo em frente à minha porta. Tudo é inocente. Ou parece. Porquê hoje? Anjo, diz-me.
       Nunca sei a que horas vai passar o meu vizinho que pede esmola. E depois corre para o Bairro Alto, para a esquina onde estão os vendedores, os dealers. Vai veloz com o sol a queimar-lhe a pele como se fosse iluminado pelo Espírito Santo. E eu gosto que a vida seja assim. Sangrenta.
       «Isto é sangue, é uma marca de sangue.» Mas não era. Era tinta encarnada que tinha manchado o passeio diante da loja das restauradoras de móveis. Devem ter sido elas. São três raparigas.
       A mancha ficou ali. Que irá acontecer hoje? Misericórdia, porque havia de viver com um escritor? Despediu-se e virou a esquina. Foi ontem à noite, quando a lua estava encoberta.
       «Vou ter de as arrancar.»
       Insistiu muito.
       Sim? Que é que isso me interessa? Ou já te passaste da cabeça? Esquece. Esquece toda a minha vida, anda, vai lá à tua que se faz tarde.
       «Vou ter de as arrancar.» Então vai lá, homem! Pensas que fazes falta? Porque em todas as vidas se faz tarde. Porque hoje.
       «Hoje não» - pedi-lhe.
       E ele insistia, insistiu muito, mas e não quis saber.

       […]

Cruz, Mafalda Ivo (2003). A Vida é Sonho. In João de Melo et al, Histórias para
 Ler à Sombra: Contos (pp. 91-109). Lisboa: Publicações Dom Quixote.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

António Victorino d’Almeida
 
Um Caso de Bibliofagia

[excerto]


       […]
       Um relâmpago intensíssimo iluminou-lhe a porta do corredor. Abriu-a devagar e certificou-se de que todos dormiam. Do quarto do mano Lourenço saíam roncos bestiais. Era um cevado, mesmo a dormir! Ria-se com as anedotas, mas tinha inveja de quem as fazia, recalcava o despeito em ódios surdos que explodiam, tempestuosos, nas situações mais imprevistas. Ameaçava de morte os espanhóis que encontrasse, por causa do sino roubado e transformado em canhão; e participara numa espera a um palhaço andaluz que trabalhava num circo… O homem ficara belfo, sem dentes, os lábios abertos, apresentara queixa na polícia e confessara que era português, natural de Ovar, jamais passara a fronteira… O mano Lourenço sabia disso, mas tinha-lhe asco por fazer rir os outros! E por falta de testemunhas, o processo não fora avante, impunes os agressores… Era uma besta, o mano Lourenço! Ressonava como um porco! A mana Honorata ressonava em assobio, como as panelas de pressão ao lume… O mano Joaquim ressonava menos, mas rosnava frases, palavrões, queixumes, revolvia-se a noite inteira e chegava a cair da cama! A Aidinha parecia uma rola e dormia com uma boneca que businava [sic] quando lhe mexiam… Dormiam todos, apesar da trovoada, moídos pelo serão com as visitas, pelo álcool do espumante, dos licores e dos bagaços. Dormiam sempre que havia festa, cada um com os seus sonhos, cada um com os seus grunhidos… E de novo a luz de um relâmpago iluminou o caminho de Leonardo: já estava na sala onde havia uma estante pomposamente chamada – a biblioteca… Juntos com estatuetas e retratos, os livros alinhavam-se, lado a lado. Havia livros de todos os tamanhos, de todas as espessuras, de todas as cores… Eram belos, os livros! E ele, que era poeta, embora não soubesse fazer versos, deslizava a mão lasciva pela fieira das lombadas e sentia aquele estranho calor dos poentes cor-de-rosa, ou da espreita minuciosa de um canto de corredor onde a Aidinha tinha mil dedos…
       Detiveram-se os seus dedos na carícia de um livro amarelado, de capa já esgarçada pelo tempo, nunca pelo uso… Lás fora, a tempestade uivava num furor de invernia escabrosa. Na sala, abraçado à estante, Leonardo sorria e recordava, rendia-se ao prazer da memória, ouvia a voz do Professor chamar-lhe Poeta, revivia o longo diálogo em que falara e fora ouvido, as palavras justas e cuidadas que escolhera para dar de si a imagem saudável de um sôfrego devorador da Filosofia que é a base transcendente do moderno saber…
       E numa volúpia gestual de câmara lenta, levou o livro amarelado à boca e começou a trincá-lo, primeiro suavemente, mordiscando as folhas do prefácio, depois com mais intensidade, num mastigar vigoroso, até ao rasgar das páginas em golpes asselvajados de mandíbula gulosa e insaciável!
       Nessa noite devorou o seu primeiro livro.
………………………………………………………………………………………………………………….
[…]

D’Almeida, António Victorino (1985). Um Caso
de Bibliofagia. Lisboa: Edições Rolim. pp. 48-49.


Páginas Paralelas:
Biografia do autor disponível aqui

Quando eu for grande: “Maestro António Vitorino de Almeida realiza sonho de criança”(SIC, 18 de fevereiro de 2013). Disponível aqui

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Natália Correia

Poemas a Rebate
[excerto]

Tudo chegava pelo lado da sombra, do terror, da pegajosa ignomínia. Os esbirros amordaçavam a luz. Com as mãos mergulhadas nas estrelas que escondia nos bolsos o poeta assobiava uma pátria de brancura e paz. O poeta dizia-se: quem um só dia amou a liberdade é plenitude de alma que se reconhece. E deu flor: um poema para ensinar risadas de camélias aos animais do medo. O poema foi arrastado para a treva onde os estranguladores das palavras constroem o silêncio da sala de espelhos onde o tirano se masturba. O poema atravessou o inferno e alguns dos seus sons ficaram queimados.
Uma vez exalado o grito de libertação que fez entrar a Cidade no exercício dos seus timbales o poema pediu ao poeta que lhe arrancasse as folhas mais ressequidas e em seu lugar pusesse as gotas de água do canto que quer correr para a vida. E o poeta fez a vontade ao poema que queria cantar. E aqui e além o corrigiu dotando-o da actualidade que as máquinas do inferno lhe roubaram.


Correia, Natália (1975). Poemas a Rebate. Lisboa: Publicações Dom Quixote. p. 16.



Na Introdução a esta colectânea, Natália Correia afirma:

[…] muitos dos poemas recolhidos neste volume foram expulsos da circulação, tendo como único escoamento aquela clandestinidade que nos ia alimentando com os frutos proibidos pela psicopatia censória.
       Outras notas são vibrações de um manifesto de mais longo curso contra as coisas do mundo que morrem onde deviam viver. […]

       Lisboa, 9 de Abril de 1975

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Maria Ondina Braga

Angústia em Pequim

[excerto]

 

ANGÚSTIA EM PEQUIM

            Esta noite acho que chamei pela minha mãe, ouvi-me chamar por ela no sono. Vivíamos à beira de um rio, e não sei quem levou-me para a outra banda e me abandonou lá. Ou teria eu ido de moto próprio, passando o rio a vau, e agora as águas subiam e cobriam-me? Ou foi a família toda que atravessou para a margem oposta deixando-me para trás? Um antigo sonho mau a empecer-me esta noite em Pequim. Sonhar com água, minha filha, águas revoltas a tolher-nos as passadas, sinal de que estamos sós no meio de estranhos, fomos atraiçoados pelos amigos. Para distrair as ideias, ando de cá para lá a perguntar a mim mesma quem morará no andar de baixo. O jornalista sírio que tão bem se entende com o menino mongoloide da senhora francesa? Cuido que sim, mas não tenho a certeza, que as portas aqui não se fecham, encostam-se, e nós desaparecemos no topo de cada lanço de escadas, uns após outros, como sombras. Uma coisa comparante ao teatro: este sai pela esquerda, aquele entra pela direita, e as saídas e as entradas, de papel.
       Ando para trás e para diante, no escuro, afeita à casa no escuro. Do corredor para a cozinha, range a esteira de bambu, e vejo o tigre amarelo-ocre de garras afiadas. A tábua do soalho que cede é a terceira a contar do quarto, a ponta esfiapada da carpete fica do lado da janela, e na base da banheira falha um azulejo por onde decerto se esgueiram baratas. De tudo informada, eu, menos de quem vive por cima e por baixo de mim. Como se os vizinhos mais não fossem do que mitos. Impossível jurar, por exemplo, que aquela música à tardinha provém das traseiras do prédio. E, embora figure uma mulher ao piano, não ouso indagar – com medo de ouvir que não há cá piano nenhum? […]


Braga, Maria Ondina (1984). Angústia em Pequim. Lisboa: Ulmeiro. pp. 153-154.

 

terça-feira, 23 de abril de 2013

Baptista-Bastos

Elegia para um Caixão Vazio

[excerto]


       […]

       Percorri um caminho incalculável, um tempo de analogias e de conhecimentos, obedecendo, impotente, a leis naturais que me vão destruindo e degradando. Estou cansado de perseguir: notícias, mulheres, o êxito, a felicidade. Ambiciono uma agitação ordenada, saturei-me do alvoroço aflito, já pouquíssimas coisas me melindram, consegui curar-me de chagas e de remorsos, expulsei-me eu próprio do sonho. Reconheço-me por aquilo que fui realizando, seria difícil o contrário, mas tudo o que fiz parece-me inútil, um intolerável lugar-comum; e já perdi todas as disponibilidades: fui reduzido e reduzi-me. O grito, a imprecação, a viva-voz são mais contundentes, mas eficazes do que a palavra escrita. De aí, talvez, que as histórias contadas de geração para geração (a verdade coral, a oralidade) se tenham mantido mais vivas, mais coloridas do que a palavra escrita. Nunca consegui viver e reflectir com rigor e escrúpulo o que vi. Sempre existi num universo de ideias e de alegorias, e a realidade é-me implacavelmente fastidiosa. Mas houve tempo em que julguei ser impossível acreditar em outra gente, em outro local, em outro destino. É; eu sei, tudo isto é deprimente, inacabado até ao fim dos tempos, sem que nada me tenha notificado do prazo. Todavia, só disponho deste povo, deste país, destes hábitos, desta monotonia, deste corpo e desta consciência. Queira ou não, sou impelido a eles, a com eles convizinhar, eis o meu fado, a minha sina.

       […]


Baptista-Bastos (1987). Elegia para um Caixão Vazio
(3ª ed.). Lisboa: Edições “O Jornal”. p. 126.

 
 
Páginas Paralelas:

Lugares bem lidos: "O bairro onde cresceu Baptista-Bastos" - vídeo (DN, 14 de agosto de 2012)

Biografia de Baptista-Bastos. Disponível em Jornal deNegócios
 
Leia também as suas crónicas no Jornal de Negócios; “Agora, para aonde vamos?” (19 Abril de 2013)

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Hélia Correia

O Separar das Águas
[excerto]

II
       Se bem que a vila parecesse protegida pelos cuidados mágicos da bruxa, não tendo sido lobrigado um único demónio ou bolchevique à espreita nos quintais, a chegada de Saca causou perturbação.
       Saca era o nome público do homem que aparecia, duas vezes por ano, trazendo na carroça, dentro de tabuleiros, uma explosão de coisas miúdas e doiradas, dedais, anéis, relógios, saca-rolhas. Parando onde queria, ou porque houvesse riso de espanholas, ou porque alguém tocasse concertina, ou porque o velho macho que o ia carregando de terra para terra lhe desse a entender que precisava de descanso, Saca levava normalmente um mês no seu caminho de Lisboa até Vilerma.
       Assim que lobrigava o casario, Saca fazia ouvir o seu sino de cobre. E parava no adro da igreja, o que uns anos atrás enfurecera o padre, até que o vendedor lhe trouxe um crucifixo debruado a rosinhas-de-toucar.
       Saca piscava o olho ao rapazio fiel e, enquanto dispunha os tabuleiros com os seus conteúdos reluzentes, fazia a narração das novidades. Nunca ninguém o ouvir a fazer propaganda da sua mercadoria. As pessoas chegavam, mexiam, experimentavam, perguntavam o preço e olhavam pensativas. Saca contava, imperturbavelmente, uma, duas, dez vezes os crimes dos ciganos, as modas de Paris e as saídas à rua dos grandes estadistas. Como dizia o professor Cristóvão, passando pela testa o dedo filosófico, naquele vendedor havia alma de cronista e ele mesmo, professor, se o Saca resolvesse assentar em Vilerma, lhe ensinaria a ler e a compor redacções.
       Mas Saca recusava, com um gesto vivido, a repetida oferta. “Pois pode ser – dizia – que eu aprendesse a ler. E de que me servia? Ficava sem assunto. Em Lisboa é que as coisas acontecem. Para não falar da França, que é de lá que vem tudo!...”.
       Passava, soberano, a mão pela cabeça do macho melancólico. O povo, à sua volta, estremecia de admiração. E Saca retomava o fio das novidades.
       […]


Correia, Hélia (1986). O Separar das Águas (2ª ed.). Lisboa: Ulmeiro. pp. 13-14.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Natália Correia

A DEFESA DO POETA

Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou o vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não verei.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.


Correia, Natália (1993). O Sol nas Noites e o Luar nos
Dias I. [Lisboa]: Círculo de Leitores. pp. 443-444.



“A Defesa do Poeta”, dito pela autora

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=NBYimM6XdAA


Páginas Paralelas:
“Centro de Estudos Natália Correia é alicerce de dinamização cultural”. DN (16 Março, 2013)

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Herberto Helder

       estende a tua mão contra a minha boca e respira,
       e sente como respiro contra ela,
       e sem que eu nada diga,
       sente a trémula, tocada coluna de ar
       a sorvo e sopro,
       ó
       táctil, ininterrupta,
       e a tua mão sinta contra mim
       quanto aumenta o mundo

Helder, Herberto (2008). A Faca não Corta o Fogo.
Lisboa: Assírio & Alvim. p. 135-136.




Páginas Paralelas:

Rodrigo Leão interpreta “Poemacto II: Minha cabeça estremece com todo o esquecimento”, de Herberto Hélder (1961)


Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=OYjnxrMUt5s

quarta-feira, 17 de abril de 2013

António Ramos Rosa

A Leitora

 
A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,

branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.



António Ramos Rosa (2001). «A Leitora», in: Antologia
Poética. Lisboa: Publicações Dom Quixote, p. 231.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Jorge de Sena

INDEPENDÊNCIA


Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
e às almas que já foram conquistadas.


Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sòzinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.


Recuso-me à inocência e ao pecado
como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!


Sena, Jorge de (1961). Poesia I
Lisboa: Livraria Morais Editora. p. 100.

Nota nossa: Foi mantida a ortografia original.


Páginas Paralelas:

“Ler Jorge de Sena” (vida e obra) na página da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro

segunda-feira, 15 de abril de 2013

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Alexandre Herculano
O Bobo
[excerto]
[…]
Tal foi em substância a narração de Dom Bibas, que, fechando a porta, conduzira o monge e o rico-homem ao lado do aposento onde ele abrira entrada para o subterrâneo.
– Por aqui – dizia o bobo com um rir diabólico – é o caminho da salvação para vós, e para mim o de ver realizado o que será de ora avante o único pensamento da minha vida.
O Lidador ficou por algum tempo em silêncio, e por fim exclamou:
– Mas quem há-de salvar os meus bons e leais cavaleiros, que me aguardam?
– Eu – acudiu o bobo. – As portas do castelo ficam abertas, porque os vigias e roldas correm pelas barbacãs. Saí vós outros, e esperai-os à boca do subterrâneo. Dentro de poucas horas todos estarão convosco. Basta que me deis um sinal com que eu possa fazer que eles me obedeçam.
O Lidador pareceu assentir à proposição de Dom Bibas; porque, tirando da escarcela uma tàbuazinha coberta de cera, com um anel que tinha no dedo estampou nela o seu selo de camafeu e, entregando-a ao bobo, lhe disse:
– Vai, apresenta isto ao meu vílico, e serás obedecido em tudo.
– Falta ainda uma cousa! – continuou Dom Bibas. – Reverendo abade, vesti esse trajo de escudeiro que aí vedes, e deixai-me vossa cogula. Não sei o que me diz o coração… Talvez me seja necessária. Será esta a primeira recompensa do serviço que ora vos faço.
Fr. Hilarião hesitou; mas o terror das ameaças que o truão ouvira ao conde só lhe dava lugar a uma ideia: a de sair de Guimarães sem risco. Depois de cinquenta anos de vida monástica, pela primeira vez o monge trocava por trajos profanos o seu santo hábito.
Dom Bibas entregou a lanterna de furta-fogo aos dois amigos, que se internaram no subterrâneo. Tanto que desapareceram, ele abriu às apalpadelas a porta exterior da sua pocilga e, cosendo-se com o muro do pátio, atravessou a ponte levadiça e encaminhou-se para o bairro do senhor da Maia.
[…]

Herculano, Alexandre (1978). O Bobo.
Amadora: Livraria Bertrand. pp. 153-154.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Miguel Medina
Alem do Maar
[excertos]
II
Durante os últimos três dias, a frota só conseguira avançar pouco mais de vinte léguas. Num fim de tarde cinzento, avistaram-se uns picos fragosos, tal como Tristão anotaria. Nessa altura, o piloto de Mocimba propusera ao capitão esperarem a mudança da lua; quando o vento rodasse, ser-lhes-ia mais fácil contrariar a força das águas e atingir a ilha de Quylee. O capitão concordara e dera ordem à frota para regressar ao ilhéu do santo-Lenho; ou do lenho, como já lhe chamavam a bordo. As reservas estavam quase esgotadas; os enfermos tornavam-se cada dia mais exigentes; os pedidos de água nunca abrandavam. Os conveses das três naves cheiravam a doença; os tripulantes iam-se abaixo uns atrás dos outros.
Antes de tocarem Mocimba, tinham pousado na foz dum grande rio, que ficara pelo dos Bõos Signaes. Porém, aquela estadia de mais dum mês acabara por se revelar amaldiçoada, e agora não havia dia ou noite em que não atirassem alguém para as águas do cemitério do mar. O capitão foi obrigado a ceder, e teve que redistribuir as suas forças. Tanto ele como o seu irmão dispensaram alguns homens da Gabriel e da Rafael, para reforçar a tripulação exausta do rival Nuno Castro. Os franges conheciam muitos percursos marítimos, mas os seus físicos ainda não tinham aprendido a navegar nos rios de sangue e de força dum homem. As pestes espalhavam-se; os de melhor condição começavam a temer vir ao convés, e acotovelar-se com a maruja.
Antes do quarto da prima arriaram os batéis em silêncio. O capitão tomou o comando no da mor, com uma mão-cheia de homens escolhidos entre os mais saudáveis. Mandou embarcar o piloto mouro de Mocimba, que respondia pelo nome de Ysuf, e o marujo Antão, como língua, para entender as indicações que o outro parecia disposto a dar-lhe. A acreditar no que ele afirmava, tinham de transpor a baía e procurar a aguada num extenso palmeiral em terra firma, perto da aldeia de Mocimba; a da Praia.
[…]
III
Mustafa de Anafé levantou-se muito cedo. Os pássaros aproveitavam o sossego do pequeno dia para voltearem sobre o cais, saciando-se com os mosquitos gordos que zuniam por lá. Assistiu à retirada cautelosa dos franges, que contornaram Mocimba longe do alcance das suas defesas. Foi uma precaução desnecessária. Os guerreiros da lua ainda dormiam. Ninguém parecia ter-se dado conta de que a frota dos alvos regressara àquelas águas, e fundeara à entrada da baía, junto ao ilhéu da Lua. Só depois de ter visto as duas embarcações desaparecerem atrás duma ponta arborizada da ilha é que se dispôs a subir a alameda que levava ao palacete de Sacoeja. Os guardas ainda tinham os olhos pesados de sono, e estranharam-no a uma hora tão temperana; o seu amo devia estar a preparar-se para as primeiras orações. Mas, calculando que o outro desejasse recebê-lo, franquearam-lhe a porta; mal ele se afastou, lavaram-se e estenderam no chão os tapetes puídos para o sabah.
Um criado veio ter com Mustafa ao pátio fresco e branco que dava para a entrada. Quando o mercador lhe disse ao que vinha, retirou-se, e foi espreitar os aposentos do soldão, para ver se Sacoeja já começara as suas preces. O mercador esperou, enquanto se ouviam as ladainhas subir das torres esguias da lua, cruzando monotonamente o espaço em todas as direcções. Mustafa orou em paz, rolando nos dedos as contas de ouro do terço novo, que comparara no mercado da cidade depois do encontro com Antão. Sacoeja não se apressou. Em dias como o de hoje, em que decidira não ir ao templo logo pela manhã, como era seu hábito, mantinha o mesmo costume das cinco preces diárias, tão certas nele como o ritmo secreto do tempo. No fim, calçou-se, enrolou-se nos seus panos mais frescos e procurou o mercador no pequeno pátio caiado da entrada.
– Os franges voltaram – disse-lhe Mustafa, mal o viu. – Devem estar outra vez ancorados no ilhéu da Lua. E, ou me engano muito, ou eles andaram esta noite em terra.
– O que quererão agora? – perguntou-lhe Sacoeja, vagamente inquieto com a notícia. – Achas mesmo que estiveram em terra? E a fazer o quê?
Mustafa pensou um instante, rolando o terço nos dedos.
– Deve ser por causa da água – respondeu-lhe por fim. – Não vejo outro motivo. Não há ali nada que se roube…
Sacoeja impacientou-se:
– Mas eles não deviam estar agora lá para o norte, a caminho de Quylee? O que é que fazem cá?
Mustafa acalmou-o:
– Não te exaltes, Sacoeja. Só te digo o que penso.
O soldão suspirou, esvaziando o peito de ar:
– Desculpa… É esta situação que me enerva – pediu-lhe, tentando sorrir. – Deves ter razão. O piloto, que não chegou a embarcar, disse-me que as reservas deles não lhe pareceram grandes. Ainda por cima, com esta lua, têm muita dificuldade em subir a costa.
Bateu palmas a chamar a guarda. Na altura em que já se julgava livre dos franges, ei-los que voltavam, e agora para ameaçá-lo na sua própria cidade.
[…]

GLOSSÁRIO:
Bõos Signaes, rio dos – possivelmente o Zambeze, Moçambique
franges – povos latinos, genericamente; portugueses
Lenho, ilhéu do santo – actual ilha de Goa, perto da ilha de Moçambique
lua – religião islâmica
Quylee, ilha de – Kilwa Kisivan, Tanzânia
soldão - sultão

Medina, Miguel (1990). Alem do Maar.
s. l.: Círculo de Leitores. pp. 73-76.