Um Caso de Bibliofagia
[excerto]
[…]
Um relâmpago intensíssimo iluminou-lhe a
porta do corredor. Abriu-a devagar e certificou-se de que todos dormiam. Do
quarto do mano Lourenço saíam roncos bestiais. Era um cevado, mesmo a dormir!
Ria-se com as anedotas, mas tinha inveja de quem as fazia, recalcava o despeito
em ódios surdos que explodiam, tempestuosos, nas situações mais imprevistas.
Ameaçava de morte os espanhóis que encontrasse, por causa do sino roubado e
transformado em canhão; e participara numa espera a um palhaço andaluz que
trabalhava num circo… O homem ficara belfo, sem dentes, os lábios abertos,
apresentara queixa na polícia e confessara que era português, natural de Ovar,
jamais passara a fronteira… O mano Lourenço sabia disso, mas tinha-lhe asco por
fazer rir os outros! E por falta de testemunhas, o processo não fora avante,
impunes os agressores… Era uma besta, o mano Lourenço! Ressonava como um porco!
A mana Honorata ressonava em assobio, como as panelas de pressão ao lume… O
mano Joaquim ressonava menos, mas rosnava frases, palavrões, queixumes,
revolvia-se a noite inteira e chegava a cair da cama! A Aidinha parecia uma
rola e dormia com uma boneca que businava [sic] quando lhe mexiam… Dormiam
todos, apesar da trovoada, moídos pelo serão com as visitas, pelo álcool do
espumante, dos licores e dos bagaços. Dormiam sempre que havia festa, cada um
com os seus sonhos, cada um com os seus grunhidos… E de novo a luz de um
relâmpago iluminou o caminho de Leonardo: já estava na sala onde havia uma
estante pomposamente chamada – a biblioteca… Juntos com estatuetas e retratos,
os livros alinhavam-se, lado a lado. Havia livros de todos os tamanhos, de
todas as espessuras, de todas as cores… Eram belos, os livros! E ele, que era
poeta, embora não soubesse fazer versos, deslizava a mão lasciva pela fieira das
lombadas e sentia aquele estranho calor dos poentes cor-de-rosa, ou da espreita
minuciosa de um canto de corredor onde a Aidinha tinha mil dedos…
Detiveram-se os seus dedos na carícia de
um livro amarelado, de capa já esgarçada pelo tempo, nunca pelo uso… Lás fora,
a tempestade uivava num furor de invernia escabrosa. Na sala, abraçado à
estante, Leonardo sorria e recordava, rendia-se ao prazer da memória, ouvia a
voz do Professor chamar-lhe Poeta, revivia o longo diálogo em que falara e fora
ouvido, as palavras justas e cuidadas que escolhera para dar de si a imagem
saudável de um sôfrego devorador da Filosofia que é a base transcendente do
moderno saber…
E numa volúpia gestual de câmara lenta,
levou o livro amarelado à boca e começou a trincá-lo, primeiro suavemente,
mordiscando as folhas do prefácio, depois com mais intensidade, num mastigar
vigoroso, até ao rasgar das páginas em golpes asselvajados de mandíbula gulosa
e insaciável!
Nessa noite devorou o seu primeiro livro.
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[…]
D’Almeida, António Victorino (1985). Um Caso
de Bibliofagia. Lisboa: Edições Rolim. pp. 48-49.
Páginas
Paralelas:
Biografia do autor
disponível aqui Quando eu for grande: “Maestro António Vitorino de Almeida realiza sonho de criança”(SIC, 18 de fevereiro de 2013). Disponível aqui
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