Hélia Correia
O Separar das Águas
[excerto]
II
Se bem que a vila parecesse protegida pelos cuidados mágicos da bruxa, não tendo sido lobrigado um único demónio ou bolchevique à espreita nos quintais, a chegada de Saca causou perturbação.
Saca era o nome público do homem que aparecia, duas vezes por ano, trazendo na carroça, dentro de tabuleiros, uma explosão de coisas miúdas e doiradas, dedais, anéis, relógios, saca-rolhas. Parando onde queria, ou porque houvesse riso de espanholas, ou porque alguém tocasse concertina, ou porque o velho macho que o ia carregando de terra para terra lhe desse a entender que precisava de descanso, Saca levava normalmente um mês no seu caminho de Lisboa até Vilerma.
Assim que lobrigava o casario, Saca fazia ouvir o seu sino de cobre. E parava no adro da igreja, o que uns anos atrás enfurecera o padre, até que o vendedor lhe trouxe um crucifixo debruado a rosinhas-de-toucar.
Saca piscava o olho ao rapazio fiel e, enquanto dispunha os tabuleiros com os seus conteúdos reluzentes, fazia a narração das novidades. Nunca ninguém o ouvir a fazer propaganda da sua mercadoria. As pessoas chegavam, mexiam, experimentavam, perguntavam o preço e olhavam pensativas. Saca contava, imperturbavelmente, uma, duas, dez vezes os crimes dos ciganos, as modas de Paris e as saídas à rua dos grandes estadistas. Como dizia o professor Cristóvão, passando pela testa o dedo filosófico, naquele vendedor havia alma de cronista e ele mesmo, professor, se o Saca resolvesse assentar em Vilerma, lhe ensinaria a ler e a compor redacções.
Mas Saca recusava, com um gesto vivido, a repetida oferta. “Pois pode ser – dizia – que eu aprendesse a ler. E de que me servia? Ficava sem assunto. Em Lisboa é que as coisas acontecem. Para não falar da França, que é de lá que vem tudo!...”.
Passava, soberano, a mão pela cabeça do macho melancólico. O povo, à sua volta, estremecia de admiração. E Saca retomava o fio das novidades.
[…]
Correia, Hélia (1986). O Separar das Águas (2ª ed.). Lisboa: Ulmeiro. pp. 13-14.
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