sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Manuel António Pina, Excerto de "O cavalinho de pau do Menino Jesus e outros contos de Natal", ilustrado por Inês do Carmo



Manuel António Pina (2009). O cavalinho de pau do Menino Jesus e outros contos de Natal.
Porto: Porto Editora.
Ilustrações de Inês do Carmo. pp. 6-7.




Esta é a última das páginas que diariamente tem recebido, desde 13 de Maio de 2011. Ao voltá-la, queremos desejar a todos uma feliz época festiva, com uma entrada em 2012 cheia de esperança.
A equipa de "Uma página por dia"

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

José Saramago, "O meu avô, também"


Talvez o dia chuvoso seja o responsável desta melancolia. Somos uma máquina complicada, em que os fios do presente activo se enredam na teia do passado morto, e tudo isto se cruza e entrecruza de tal maneira, em laçadas e apertos, que há momentos em que a vida cai toda sobre nós e nos deixa perplexos, confusos, e subitamente amputados do futuro. Cai a chuva, o vento desmancha a compostura árida das árvores desfolhadas – e dos tempos passados vem uma imagem perdida, um homem alto e magro, velho, agora que se aproxima, por um carreiro alagado. Traz um cajado na mão, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente, caminham animais fatigados, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. Homem e bichos avançam sob a chuva. É uma imagem comum, sem beleza, terrivelmente anónima.
            Mas o homem que assim se aproxima, vago, entre cordas de chuva que parecem diluir o que na memória não se perdeu, é meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que importam. Fala tão pouco (são poucas as palavras realmente importantes) que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende qualquer coisa como uma luz de aviso. Fora isso, tem um modo de estar sentado, olhando para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede mais próxima, que chega a ser intimidade. Não sei que diálogo mudo o mantém alheado de nós. O seu rosto é talhado a enxó, fixo mas expressivo, e os olhos, pequenos e agudos, têm de vez em quando um brilho claro como se nesse momento alguma coisa tivesse sido definitivamente compreendida. Parece uma esfinge, direi eu mais tarde, quando as leituras eruditas me ajudarem nessas comparações tão abonatórias de uma fácil cultura. Hoje digo que parecia um homem.
            E era um homem. Um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca. Recordo agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira – ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e das estrelas), do gado que o conhecia, das histórias e lendas que eram o seu cabedal da infância remota. Adormecemos tarde, enrolados na manta lobeira, que a madrugada refrescaria com certeza e o orvalho não caía só sobre as plantas.
Mas a imagem que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nessa altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogação das estrelas. Só isto – e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo.
José Saramago (1985). Deste Mundo e do Outro: Crónicas
(2ª ed.). Lisboa: Editorial Caminho. pp. 29-31.



Discurso de José Saramago, Prémio Nobel da Literatura em 1998, com link para ficheiro audio:http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1998/saramago-lecture-p.html



quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

David Mourão-Ferreira, "ladainha dos póstumos natais"



Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira (1986). ladainha dos póstumos natais. Cancioneiro de Natal. Lisboa: Edições Rolim. Fotografias de Ana Esquível. pp. 17/49.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

António Alçada Baptista,Excerto de "O Riso de Deus"


É que a gente ainda não se deu bem conta das virtudes das nossas fraquezas: às vezes, aquilo que faz do foguetão que nos coloca numa órbita donde se lança outro olhar sobre o planeta Terra, são os nossos medos, ou o nosso orgulho, ou a nossa incapacidade de agarrar formas de poder.
Outra coisa: acho que a nossa vida tem ciclos. Julgo que estou no fim de mais um ciclo e que vou começar outro. Então temos uma imensa vontade de nos olharmos por dentro para compreender e pôr em ordem as coisas que por lá andam em desalinho. Este ciclo é capaz de ser o último mas o mais decisivo: é o resultado de uma vida e por isso é preciso fazer uma paragem para ver se se encontra o caminho que vai dar ao amor. Dói muito o amor no Outono porque nos é agora muito evidente que andámos enganados, que temos de descobrir outra estrada e que, para isso, não é fácil arranjar companhia…o Malraux dizia que “quando os sistemas de valores se desmoronam, o homem não encontra mais que o seu corpo.” (…) Os que sonham a dormir sabem, de manhã, que isso era uma ilusão mas os que sonham de olhos abertos, acreditam que o estofo do futuro será feito desse sonho.

António Alçada Baptista (1994). O Riso de Deus.
Lisboa: Editorial Presença. p. 22.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

José Mário Branco, "Eu vim de longe, eu vou para longe"


Quando o avião aqui chegou
Quando o mês de Maio começou
Eu olhei para ti
E então entendi
Foi um sonho mau que já passou
Foi um mau bocado que acabou
Tinha esta viola numa mão
Uma flor vermelha na outra mão
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a fronteira me abraçou
Foi esta bagagem que encontrou
Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei p’ra aqui chegar
Eu vou p’ra longe
P’ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p’ra nos dar
E então olhei à minha volta
Vi tanta esperança andar à solta
Que não hesitei
E os hinos que cantei
Foram frutos do meu coração
Feitos de alegria e de paixão
Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei p’ra aqui chegar
Eu vou p’ra longe
P’ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p’ra nos dar
Quando a nossa festa se estragou
E o mês de Novembro se vingou
Eu olhei p’ra ti
E então entendi
Foi um sonho lindo que acabou
Houve aqui alguém que se enganou
Tinha esta viola numa mão
Coisas começadas noutra mão
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a espingarda se virou
Foi p’ra esta força que apontou
Eu vim de longe  
De muito longe
O que eu andei p’ra aqui chegar
Eu vou p’ra longe
P’ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p’ra nos dar



E então olhei à minha volta
Vi tanta mentira andar à solta
Que me perguntei
Se os hinos que cantei
Eram só promessas e ilusões
Que nunca passaram de canções
Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei p’ra aqui chegar
Eu vou p’ra longe
P’ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p’ra nos dar
Quando finalmente eu quis saber
Se ainda vale a pena tanto crer
Eu olhei para ti
Então eu entendi
É um lindo sonho para viver
Quando toda a gente assim quiser
Tenho esta viola numa mão
Tenho a minha vida noutra mão
Tenho um grande amor
Marcado pela dor
E sempre que Abril aqui passar
Dou-lhe este farnel para o ajudar
Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei p’ra aqui chegar
Eu vou p’ra longe
P’ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p’ra nos dar
E agora eu olho à minha volta
Vejo tanta raiva andar a solta
Que já não hesito
E os hinos que repito
São a parte que eu posso prever
Do que a minha gente vai fazer
Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei p’ra aqui chegar
Eu vou p’ra longe
P’ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p’ra nos dar

José Mário Branco (1982). Eu vim de longe, eu vou para longe. Em Ser Solidário [LP vinil]. s/l: Edisom, Lda.

 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Diane Tong, Excerto de "Contos Populares Ciganos"


Porque é que os Ciganos estão espalhados pelo mundo
Rússia
Encontrei esta versão de um conto explicativo recorrente – os outros relatos tratam normalmente da guerra – numa colectânea de contos populares ciganos russos publicada na Escócia, em 1986. Os organizadores foram Yefim Druts, filho de um rabino de Moscovo, e o poeta Alexei Gessler.
Isto passou-se há muito tempo.
Um cigano e a sua família andavam em viagem. O seu cavalo estava pele e osso e pouco firme nas pernas e à medida que a família cigana ia aumentando era-lhe cada vez mais difícil puxar a pesada carroça. Em breve a carroça ficou tão cheia de crianças aos trambolhões que o pobre cavalo mal conseguia arrastar-se pelo caminho às covas.
A carroça lá ia aos tombos, ora tombando para a esquerda, ora para a direita, tachos e panelas a cair, e uma vez por outra uma criança descalça era atirada ao chão de cabeça.
Não era tão mau à luz do dia, pois podiam ir apanhar as panelas e as criancinhas; mas no escuro não se viam. Aliás, quem é que era capaz de fazer as contas a uma tribo daquelas? E o cavalo lá seguia penosamente.
O cigano deu a volta à terra e onde quer que fosse deixava ficar um filho: mais um, e mais um, e mais um.
E foi assim, estão a ver?, que os Ciganos se espalharam pela Terra.
(pp. 55-6)
A noiva e a gema de ovo
Estados Unidos
Carol Miller, escritora e antropóloga, a quem contaram esta história nos anos sessenta, comenta: «Entre os Rom americanos, um casamento é uma festa, ruidosa e animada com música e danças, bolos, whiskey e mesas de comida. A estrela da festa é a noiva e, tal como na história, muitas vezes está demasiado nervosa para comer. Chega num vestido de baile vermelho e é vestida pela sogra e cunhadas, desta vez de branco e ouro de vinte e quatro quilates. É ponto de orgulho para a família do noivo cobrir-lhe o peito de moedas de ouro, correntes, jóias da melhor qualidade, ouros de família, ouro com significado para a história da família… Assim ataviada, dançam com ela os seus parentes homens e depois as mulheres suas parentes, com os convidados a comandar, a bater um ritmo insistente que pouco atende à música. Por tradição, o casamento há-de durar três dias, três festas, e quase todos os acontecimentos rituais têm a noiva no seu centro.»
Note-se os ladrões gadjé [não-ciganos] introduzidos, pois costumam ser os ciganos a desempenhar este papel.
Isto passou-se antigamente. Uma rapariga estava muito nervosa no seu casamento. Não comia: tinha coisas a mais para fazer. Foi um grande casamento, com muita gente, uma grande festa que durou pela noite dentro. Já era tarde e ela descascou um ovo, comeu a clara e meteu a gema na boca. Estava tão nervosa que se esqueceu de mastigar e a gema entalou-se-lhe na garganta e ela morreu. Por isso, em vez de um casamento as pessoas foram a um funeral.
Na noite seguinte dois gadjés que a tinham visto toda bem vestida para o casamento, cheia de correntes de ouro e de moedas de ouro, foram roubá-la. Abriram o caixão. Um deles pousou o pé no peito dela para tirar os colares e a gema saltou para fora. Recuperando o fôlego, ela tossiu e disse:
 – Que estou eu a fazer aqui?
Pôs os gadjés a fugir de susto. Não apanharam o ouro.
Depois ela foi para o acampamento e encontrou a sua gente. Ficaram assustados porque sabiam que ela tinha morrido. Então ela disse:
– Não sou nenhum fantasma. Estou viva.
E viveu mais quarenta anos.
Esta história é verdadeira.
(pp. 74-6)
Diane Tong (1998). Contos Populares Ciganos. (Telma Costa, Trad.).
Lisboa: Teorema. (publicado pela primeira vez em 1989)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Ana Estrela, "Barco de papel"


Andei à deriva no mar, no meu barco de papel, sem relógio, mapa ou prazo p’ra regressar… As ondas escolheram-me um rumo mas a brisa, sua confidente, não mo sussurrou ao ouvido… Peixes multicolores saltitavam num ritmo frenético, salpicando-me com água salgada e descrevendo um círculo em volta do barco, qual soldados escoltando o seu comandante. Pássaros variados soltando os seus gritos de guerra, vinham caçá-los sem pudor, remorso ou hesitação, enquanto os mesmos se debatiam, contorcendo-se num esforço inglório, na luta pela sobrevivência… Mas não sobreviviam… Não sobreviviam como eu sobrevivia, naquela imensidão de líquido e incerteza, com a frustração própria de alguém sem missão… O sol tapou-se com nuvens, talvez p’ra evitar ter de me consolar. Foi então que desejei ser peixe… Desejei sê-lo para saltitar freneticamente, para salpicar, para descrever círculos em volta de barcos, escoltar comandantes e matar a fome a pássaros variados… Mas este desejo foi subitamente penetrado por cânticos… Cânticos melodiosos, encantatórios e irresistíveis… Cânticos que me seduziram e dei por mim olhando as águas transparentes… Vi cabeleiras longas e compridas, caras belas com olhos a fitar-me e silhuetas frágeis, femininas, que terminavam em caudas escamosas de peixe… Seria eu? Parte mulher, parte peixe? Seria a minha imagem espelhada nas águas? Todas as outras figuras seriam meus clones? Metade humanas para me acompanharem à deriva, metade peixes para andarmos em cardume? Mas as sereias outrora submersas, nadavam agora à superfície das águas esfumando as minhas desconfianças… Queriam cantar p’ra mim, queriam convidar-me a brincar com elas… Mas à queda das primeiras gotas, às quais outras se sucederam, aumentando de intensidade, transformando-se num aguaceiro, as sereias desapareceram… E o meu barco de papel foi-se desfazendo, desfazendo e também ele desapareceu… Depois, sem meio de transporte não pude mais viajar no meu sonho. Então acordei, levantei-me e continuei com a minha missão, a minha missão de continuar a viver…
Ana Estrela. (29-05-2011). Barco de papel. (Texto inédito)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Heitor Aghá Silva, Excerto de "arqueologia da palavra"



Na mão direita o sílex,
a pedra tosca…
Preênsil o sonho adere
ao gume rápido,
à súbita e excessiva claridade.
Galho a galho, feericamente iluminado,
treparei às bagas mais desejadas
e nos ramos mais altos dos meus olhos
sílaba a sílaba construirei
as luzes rápidas
da minha anunciada humanidade.
                                                               (p. 9)



Deito-me ao longo do poema.
Sobre a relva das palavras devagar me deito,
e dispo, e bebo nas ínfimas partículas do orvalho
as inflamadas vozes das manhãs vindouras.
Ao longo do poema, devagar,
como se o sangue prefaciado e antigo
coagulasse de repente,
surdamente explode um cântico selvagem…
Tatuagem. Seiva. Ritmo.
Estas serão as rosas que livremente eclodirão
na próxima Primavera.
Pelos muros do Outono
alguém construirá, sobre os meus ombros,
sinais visíveis dos ventos da mudança.

………………………………….
………………………………….

A cabeça do pássaro mal sustenta
a beleza extraordinária
que o seu canto encerra.
                                       (p.13)



Construtor de sonhos e de mitos
ergo-me bruxuleante
no interior de abóbadas irreais
e disponho, disciplinadamente,
o meu mobiliário de sombras
nos recantos mais iluminados.
Lá fora, rondando a noite, os lobos uivam.
A neve tem reflexos simiescos.
Multiplicando a fome pelo frio
inspiradamente eu grito: - Carne! Flecha!
Mão harmoniosa!...
Nas paredes do abrigo a magia do ocre
verbaliza a neblina matinal que se dissipa.
Na base de uma aresta inesperada
um olho nu desponta reclinado.
Tangem-lhe a íris migratória
ténues rémiges de uma ave mítica
em rápida ascensão solar.
Ganhando velocidade nas hastes pontiagudas
nitidamente a rena amadurece.
                                                     
                                                             (p. 21)

Heitor Aghá Silva (1991). arqueologia da palavra. Horta: Edição do autor.
Ilustrações de Sérgio Luís.

Link para o Avenida Marginal, Jornal cultural faialense, dirigido por Heitor H. Silva:http://jornalavenidamarginal.blogspot.com/2011/04/avenida-marginal-n-9.html


sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Kevin Bales, Excerto de "Gente Descartável"


     Na nova escravidão, a raça tem pouco significado. No passado, as diferenças étnicas e raciais eram usadas para explicar e desculpar a escravatura. Essas diferenças permitiam aos escravocratas inventar razões que tornavam a escravatura aceitável, ou até uma boa coisa para os escravos. A diferença dos escravos tornava mais fácil usar a violência e a crueldade necessárias para o controlo total. Essa diferença podia ser definida quase de um modo qualquer – diferente religião, tribo, cor de pele, língua, costumes ou classe económica. Qualquer dessas diferenças podia ser e era usada para separar os escravos dos escravocratas. Manter essas diferenças exigia um tremendo investimento em algumas ideias muito irracionais – quanto mais louca a ideia justificativa mais veementemente se insistia nela. Os Pais Fundadores tiveram que recorrer a contorções morais, linguísticas e políticas para explicar por que razão a sua «terra dos livres» era só para pessoas brancas. Muitos deles sabiam que ao admitir a escravatura estavam a trair os seus mais caros ideais. Eram levados a isso porque nesse tempo a escravatura valia muito dinheiro para muita gente na América do Norte. Mas deram-se ao trabalho de urdir desculpas legais e políticas porque sentiam que tinham de justificar moralmente as suas decisões económicas.
     Hoje, a moralidade do dinheiro supera todas as outras considerações. A maioria dos escravocratas não sente a necessidade de explicar ou defender o método de recrutamento ou de gestão do trabalho que escolheram. A escravatura é um negócio muito lucrativo, e um bom lucro é justificação bastante. Libertos das ideias que restringem o estatuto de escravo aos outros, os escravocratas modernos usam outros critérios para escolher escravos. Na realidade, eles gozam de uma grande vantagem: ser capaz de escravizar pessoas do seu próprio país ajuda a manter os custos baixos. Os escravos no Sul da América no século XIX eram muito caros, em parte porque originalmente tinham de ser transportados de África por milhares de quilómetros. Quando os escravos podem ser obtidos na cidade ou na região ao lado, caem os custos de transporte. A questão não é: «Serão eles da cor certa para serem escravos?», mas «Serão eles suficientemente vulneráveis para serem escravizados?». Os critérios de escravização não se referem à cor, tribo ou religião; eles centram-se na fraqueza, na credulidade e na privação.
     É verdade que em alguns países existem diferenças étnicas ou religiosas entre os escravos e os escravocratas. NO Paquistão, por exemplo, muitos tijoleiros escravizados são cristão, enquanto os escravocratas são muçulmanos. Na índia, escravo e escravocrata podem ser de castas diferentes. Na Tailândia podem ser de diferentes regiões do país e são muito mais provavelmente mulheres. Mas no Paquistão há cristãos que não são escravos, na Índia membros da mesma casta que são livres. A sua casta ou religião reflecte simplesmente a sua vulnerabilidade à escravização; não é a causa dela. Só num país, a Mauritânia, o racismo da antiga escravatura persiste – ali os escravos negros pertencem a escravocratas árabes, e a raça é uma divisão-chave. Na verdade, algumas culturas estão mais divididas pelas linhas raciais do que outras. A cultura japonesa distingue fortemente os japoneses como diferentes de todos os outros, e por isso as prostitutas escravizadas no Japão são provavelmente mulheres tailandesas, filipinas ou europeias – embora possam também ser japonesas. Mesmo ali, a diferença-chave não é racial, mas económica: as mulheres japonesas não são de modo nenhum tão vulneráveis e desesperadas como as tailandesas ou filipinas. E as tailandesas estão disponíveis para serem transportadas para o Japão, porque os tailandeses escravizam tailandeses. O mesmo padrão verifica-se nos Estados ricos em petróleo da Arábia Saudita e do Kuwait, onde os árabes muçulmanos escravizam promiscuamente hindus do Sri Lanka, cristãos das Filipinas e muçulmanos da Nigéria. O denominador comum é a pobreza, não a cor. Por trás de cada afirmação de diferença étnica, está a realidade da disparidade económica. Se todos os canhotos do mundo se tornassem amanhã necessitados, em breve haveria escravocratas a aproveitar-se deles. Os modernos escravocratas são predadores intensamente conhecedores da fraqueza; eles estão a adaptar rapidamente uma prática antiga à nova economia global.
Kevin Bales (2001). Gente Descartável: A Nova Escravatura na Economia Global.
(António Pescada, Trad.). Lisboa: Caminho. pp. 20-22.



Web page da Anti-Slavery International: http://www.antislavery.org/english/


Iqbal Masih (slave; anti-slavery activist; born 1982; killed 1995) – his story
   

 Stop Childhood Labour – tribute to Iqbal Masih