Angústia em Pequim
[excerto]
ANGÚSTIA EM PEQUIM
Esta
noite acho que chamei pela minha mãe, ouvi-me chamar por ela no sono. Vivíamos à
beira de um rio, e não sei quem levou-me para a outra banda e me abandonou lá. Ou
teria eu ido de moto próprio, passando o rio a vau, e agora as águas subiam e
cobriam-me? Ou foi a família toda que atravessou para a margem oposta
deixando-me para trás? Um antigo sonho mau a empecer-me esta noite em Pequim. Sonhar
com água, minha filha, águas revoltas a tolher-nos as passadas, sinal de que
estamos sós no meio de estranhos, fomos atraiçoados pelos amigos. Para distrair
as ideias, ando de cá para lá a perguntar a mim mesma quem morará no andar de
baixo. O jornalista sírio que tão bem se entende com o menino mongoloide da
senhora francesa? Cuido que sim, mas não tenho a certeza, que as portas aqui
não se fecham, encostam-se, e nós desaparecemos no topo de cada lanço de
escadas, uns após outros, como sombras. Uma coisa comparante ao teatro: este
sai pela esquerda, aquele entra pela direita, e as saídas e as entradas, de
papel.
Ando para trás e para diante, no escuro,
afeita à casa no escuro. Do corredor para a cozinha, range a esteira de bambu,
e vejo o tigre amarelo-ocre de garras afiadas. A tábua do soalho que cede é a
terceira a contar do quarto, a ponta esfiapada da carpete fica do lado da janela,
e na base da banheira falha um azulejo por onde decerto se esgueiram baratas.
De tudo informada, eu, menos de quem vive por cima e por baixo de mim. Como se
os vizinhos mais não fossem do que mitos. Impossível jurar, por exemplo, que
aquela música à tardinha provém das traseiras do prédio. E, embora figure uma
mulher ao piano, não ouso indagar – com medo de ouvir que não há cá piano
nenhum? […]
Braga, Maria Ondina (1984). Angústia em Pequim. Lisboa: Ulmeiro. pp. 153-154.
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