Luís Afonso
[excerto]
A REUNIÃO JÁ ESTAVA quase no fim quando surgiu a questão que viria a originar a polémica. Proponho que se peça à Junta de Freguesia o terreno anexo ao nosso campo de futebol para construir uma bancada e novos balneários. Falou Serafim Augusto, presidente do Santa Bárbara FC, principal clube da localidade de Santa Bárbara Bendita, sobretudo depois de o seu rival SC Benditense ter sido expulso de todos os campeonatos por prática de corrupção, materializada com o pagamento de uma jantarada a um árbitro. Confessou o subornado que comeu uma cabeça de borrego e uns tordos fritos, que estavam muito bons, dias antes de ter inventado três penáltis a favor do dito clube. Mais confessou que inventou três penaltis porque os primeiros dois foram chutados para fora, o que não se compreende com tantos treinos que há hoje em dia. Mas voltemos a Serafim Augusto e à reunião da direcção do Santa Bárbara FC. Sim, acho boa ideia, é um terreno que está ali ao abandono, disse o vice-presidente. Além disso, não deves ter problemas em convencer a Junta, Serafim, acrescentou um dos vogais, provocando a risota geral, ou quase, porque o presidente manteve o seu ar circunspecto. E tratou de pôr a proposta a votação, tendo como resultado a inevitável unanimidade. Passadas três semanas, na reunião ordinária da Junta de Freguesia de Santa Bárbara Bendita, o ofício proveniente do Santa Bárbara FC mereceu a maior atenção dos presentes, os quais, um após outro, manifestaram total disponibilidade para satisfazer o pedido e ceder o terreno em causa. Mas o presidente da Junta, Serafim Augusto, ele mesmo, achou que não era bem assim. Que na freguesia haveria outras colectividades que poderiam reivindicar o terreno, com a mesma legitimidade. Que se corria o risco de aparecer alguém a acusar a Junta de privilegiar o clube. Que o terreno faz falta à Junta. E que, não menos importante (last but not least ficava aqui bem, com aquele ar pedante q. b. que dá sempre jeito, mas o facto de esta história se passar em meio rural faz a expressão ficar assim um nadinha deslocada), não percebia para que raio queria o clube construir uma nova bancada e novos balneários se estava muito bem servido, com obras de remodelação realizadas recentemente, que custaram um dinheirão e tiveram a comparticipação da Junta em mais de noventa por cento. Os restantes membros da Junta olharam uns para os outros, talvez a pensar que Serafim Augusto estivesse a brincar com eles. Ó Serafim, vamos lá ver, então tu não és o presidente do Santa Bárbara, atirou-lhe corajosamente o secretário, também ele sócio e antigo atleta do clube. A resposta saiu logo. Sou, claro que sou, mas também sou o presidente aqui da Junta. E se há coisa que eu não admito é a Junta ser prejudicada por ninguém. Que vais fazer, insistiu o secretário. Indeferir o pedido, é a única coisa que pode ser feita, disse solenemente o presidente. Quem vota contra, quis saber, procurando o olhar de cada um dos eleitos. Alguém se abstém, questionou. Então está aprovado por unanimidade, agora há que enviar um ofício ao Santa Bárbara FC a comunicar o indeferimento. O ofício foi recebido só quatro dias depois, devido a uma greve dos carteiros. Não ocorreu a ninguém que a carta poderia ser entregue em mão, estando a sede da Junta paredes-meias com a sede do clube. Mas não teria o carimbo dos correios. A vida sem carimbos pode ficar facilitada, é certo, mas não tem carimbos. Quando Serafim Augusto entrou no clube nessa manhã, a mulher da limpeza entregou-lhe a correspondência. Ao abrir o envelope remetido pela Junta, o presidente do Santa Bárbara FC não conteve um berro. Merda. Se eu apanho estes filhos da puta da Junta. E marcou logo uma reunião extraordinária com apenas um ponto na ordem de trabalhos, o indeferimento da Junta de Freguesia. Sem conseguir disfarçar o estado de nervos em que se encontrava, Serafim Augusto deu início à reunião com uma tomada de posição. Vamos mostrar a esses gajos da Junta que não se trata assim uma instituição que tanto tem prestigiado esta terra. Vamos fazer um comunicado à população a denunciar a forma como estamos a ser tratados. E assim fizeram. […]
Afonso, Luís (2012). O Comboio das Cinco: O livro de LOPES,
o escritor pós-moderno. Lisboa: Abysmo. pp. 45-49.
Páginas Paralelas:
Notícia sobre o lançamento de O Comboio das Cinco, com o texto de apresentação do livro, da autoria de Mário de Carvalho (Público. 13.12.2012)
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