quarta-feira, 10 de abril de 2013

Fernando Campos
A Casa do Pó
[excerto]
 – Vê tu, irmão Diogo – digo eu –, como a minha vida se assemelha no presente momento a esta encruzilhada de caminhos!
Trazemos os pés macerados das longas caminhadas e a garganta seca do pó das sendas de terra batida e do sol violento, a pino. Recorta-se já na linha do horizonte o perfil de Évora, aonde contamos chegar a meio da tarde, a horas de vésperas. Vimos de longe, no nosso tirocínio de noviços. Há mais de um mês andamos calcorreando toda a região. Seguimos pelo trilho que corre a par com o aqueduto em obras de reconstituição. O sábio André de Resende descobrira os vestígios do antigo aqueduto romano de Sertório e el-rei D. João III convenceu-se da bondade de tal empreendimento.
Súbito bifurca-se o caminho e, hesitantes, paramos a perscrutar o rumo. «A encruzilhada da vida? Como assim?», pergunta o meu companheiro. É ele o coração mais bondoso e temente a Deus que eu jamais vi, mas a cabeça um tanto dura e não dada à leitura dos livros. A horta ou a cozinha, depois dos deveres da oração na capela, são o lugar certo, nunca a biblioteca. Sentamo-nos à sombra de uma azinheira, numa grossa raiz que emerge coleante da terra. «Ali estavam dois caminhos diante de nós: um virava à esquerda, o outro à direita, e era forçoso que tomássemos por um deles. Estranho dilema se patenteava ao caminheiro se não queria perder a tramontana. Isto para mim era simbólico. Não sabia que fazer. Conhecia Diogo o mito de Hércules e a encruzilhada?»
– Não.
– Tinha Hércules chegado à adolescência e seguia por um caminho, quando se lhe deparou uma bifurcação. Indeciso, sentou-se…
– Tal como nós…
– … a pensar por qual deles meteria…
– Tal como nós…
– … Eis que ao seu encontro e vindas de cada um dos caminhos se aproximam duas mulheres jovens. A que avançava da esquerda vestia uma túnica tão diáfana que permitia se lhe vissem as formas extremamente bem proporcionadas do corpo, as ancas, o busto, as pernas, o rosado da carne, o carmim dos bicos dos seios, a sombra violeta do púbis…
– Jesus!” – benzeu-se irmão Diogo.
– … Os olhos, pintados, eram dois abismos de promessas e os lábios, carnudos, vermelhos, sensuais, inculcavam beijos que…
– … que?...
– … que nem tenho nomes adjectivos, irmão Diogo, para os caracterizar. E dirigindo-se a Hércules fez-lhe ver, em palavras suaves e numa voz quente e maviosa, quanto era boa a saudável juventude dele, tão apta aos prazeres da vida, do lazer, da riqueza, da luxúria… E enlaçava-o com os seus braços roliços e quentes, perfumados, nos olhos cintilando revérberos de desejo, a boca aflorando-lhe a pele em carícias indizíveis. Hércules sentia-se extasiado, enleado, tentado, e ia a levantar-se para seguir a jovem, quando a outra lhe fez sinal que esperasse. Era igualmente jovem, mas a sua beleza vinha de dentro, como que se lhe espelhava no semblante a formosura da alma, todo o seu porte era recatado e sem artifícios de pinturas ou perfumes, sem requebros do corpo nem desafios dos olhos, isenta de sorrisos equívocos e de provocações na voz. Falou-lhe com aquela contenção grave e sisuda que é timbre dos prudentes e avisados, mostrando-lhe como eram falazes e ilusórios os prazeres do mundo e como a virtude só se alcança seguindo o duro caminho do domínio do espírito sobre a carne, dos sacrifícios e privações, da humildade, do esforço e do trabalho. Ao fim desta penosa caminhada encontrar-se-ia, então, o prémio que a divindade reserva aos justos e virtuosos. Não lhe prometia, se escolhesse segui-la, senão canseiras e renúncias, mas o prémio final a coroar merecidamente a labuta e as atribulações da vida.
– Qual dos caminhos escolheu Hércules?
– O segundo – respondo eu, enquanto desenho no pó do chão a figura da estrada que se bifurca.
[…]
«Tomássemos então o caminho da direita», exclamava o meu companheiro levantando-se. Ergo-me também. Reparasse no entanto que neste caso era o da esquerda que parecia dirigir-se para Évora. Mas Diogo, supersticioso, teima em que havemos de ir pelo da direita e é por esse que metemos. […]

Campos, Fernando (s.d.). A Casa do Pó (3ª ed.).
Lisboa: Difel. pp. 35-37.

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