sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

José Luís Peixoto

Quando nasci

quando nasci. esperava que a vida.
me trouxesse. a terra. quando nasci.
esperava que a vida. me trouxesse.
as árvores. e os pássaros. e as crianças.
quando nasci. tinha o mundo. todo.
depois dos olhos. depois dos dedos.
e não percebi. não percebi. nada.
nunca imaginei. quando nasci. que a vida.
quando nasci. já era a escuridão. a escuridão.
em que estava. quando nasci.


José Luís Peixoto (2007). «quando nasci», in: A Criança em Ruínas (6.ª ed.). Vila Nova de Famalicão: Quasi, p. 37.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

José Luís Peixoto

na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais 
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde 
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.


José Luís Peixoto (2007). «na hora de pôr a mesa, éramos cinco», in: A Criança em Ruínas (6.ª ed.). Vila Nova de Famalicão: Quasi, p. 13.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Mário Cesariny

aeroporto

a mala que segue viagem
assim como o avião
têm a grande vantagem
de não terem coração

só formas amplas - metais
de uma brancura de praia -
dentro vão sonhos a mais
é bom que a mala não caia

mala do sonho vais bem
assim deitada de lado?
chega-te a roupa que tens
ou chamamos o criado?

ou chamamos o fantasma
da queda livre no espaço,
vêrga do pássaro de aço
onde a poesia se espasma?

Mário Cesariny, «aeroporto», in: manual de prestidigitação. Lisboa: Assírio e Alvim, p. 75.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Mário Cesariny

manhã fresca...

Manhã fresca, reclinada
pela primavera crescente.
O mais pequenino nada
está como se fôra gente.

De um rapaz que finda
(na alameda) uma novela perturbada,
uma mulher ainda linda
esperou mas não foi olhada

E na folhagem também
certo desencontro corre:
a primavera que vem
na trovoada que morre

Mário Cesariny (1981). «manhã fresca...», in: manual de prestidigitação. Lisboa: Assírio e Alvim, p. 78.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mário Cesariny

arte de inventar os personagens

Pomo-nos de pé, com os braços muito abertos
e olhos fitos na linha do horizonte
Depois chamamo-los docemente pelos seus nomes
e os personagens aparecem

Mário Cesariny (1981), «arte de inventar os personagens», in: manual de prestidigitação. Lisboa: Assírio e Alvim, p. 137.