A Voz dos Deuses
[excerto]
(Ilustração de Vasco Lopes para esta
edição de A Voz dos Deuses)
III – ENDOVÉLICO
I
Um clamor
feito de milhares de vozes ressoou pelas fragas do Monte no momento em que as
chamas subiram na gigantesca pira.
Em redor, centenas de outras fogueiras
mais pequenas consumiam os restos dos sacrifícios – ovelhas, cabras, porcos e
bois, rebanhos inteiros trazidos da planície ou das povoações serranas. O cavalo
de Viriato fora imolado em primeiro lugar e deposto aos seus pés, com as armas,
o escudo e o capacete.
Nada mais podíamos fazer senão lamentar a
nossa perda e manifestar ao espírito do Comandante, antes que ele se afastasse,
a dor que a sua morte nos causara. Enquanto o fogo devorava as madeiras, o
corpo e as oferendas, formámos em ordem de batalha e desfilámos à volta da
pira, soltando os gritos rituais e os lamentos fúnebres que devem saudar um
grande chefe. Porém, gritos e lamentos saíam do coração dos guerreiros, não
eram o simples cumprimento de um dever. Nenhum rei ibérico teve do seu povo a
homenagem que a hoste lusitana e os habitantes do Monte da Deusa prestaram a
Viriato.
A realeza que os deuses não lhe
conferiram em vida foi-lhe reconhecida por nós todos naquele último adeus. Viriato
não partiu só; nos jogos que se realizaram sobre o sepulcro que acolheu as suas
cinzas, mais de duzentos guerreiros combateram até à morte, para que no Além
ele tivesse a sua escolta, uma verdadeira guarda real.
[…]
Aguiar, João (1999). A Voz dos Deuses (21ª ed.).
Porto: Asa Editores. pp. 342-344.
Páginas Paralelas:
“Autobiografia de João Aguiar. Momentos de
Não-Glória” – autobiografia escrita para o JL em
2005
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