quinta-feira, 11 de abril de 2013

Miguel Medina
Alem do Maar
[excertos]
II
Durante os últimos três dias, a frota só conseguira avançar pouco mais de vinte léguas. Num fim de tarde cinzento, avistaram-se uns picos fragosos, tal como Tristão anotaria. Nessa altura, o piloto de Mocimba propusera ao capitão esperarem a mudança da lua; quando o vento rodasse, ser-lhes-ia mais fácil contrariar a força das águas e atingir a ilha de Quylee. O capitão concordara e dera ordem à frota para regressar ao ilhéu do santo-Lenho; ou do lenho, como já lhe chamavam a bordo. As reservas estavam quase esgotadas; os enfermos tornavam-se cada dia mais exigentes; os pedidos de água nunca abrandavam. Os conveses das três naves cheiravam a doença; os tripulantes iam-se abaixo uns atrás dos outros.
Antes de tocarem Mocimba, tinham pousado na foz dum grande rio, que ficara pelo dos Bõos Signaes. Porém, aquela estadia de mais dum mês acabara por se revelar amaldiçoada, e agora não havia dia ou noite em que não atirassem alguém para as águas do cemitério do mar. O capitão foi obrigado a ceder, e teve que redistribuir as suas forças. Tanto ele como o seu irmão dispensaram alguns homens da Gabriel e da Rafael, para reforçar a tripulação exausta do rival Nuno Castro. Os franges conheciam muitos percursos marítimos, mas os seus físicos ainda não tinham aprendido a navegar nos rios de sangue e de força dum homem. As pestes espalhavam-se; os de melhor condição começavam a temer vir ao convés, e acotovelar-se com a maruja.
Antes do quarto da prima arriaram os batéis em silêncio. O capitão tomou o comando no da mor, com uma mão-cheia de homens escolhidos entre os mais saudáveis. Mandou embarcar o piloto mouro de Mocimba, que respondia pelo nome de Ysuf, e o marujo Antão, como língua, para entender as indicações que o outro parecia disposto a dar-lhe. A acreditar no que ele afirmava, tinham de transpor a baía e procurar a aguada num extenso palmeiral em terra firma, perto da aldeia de Mocimba; a da Praia.
[…]
III
Mustafa de Anafé levantou-se muito cedo. Os pássaros aproveitavam o sossego do pequeno dia para voltearem sobre o cais, saciando-se com os mosquitos gordos que zuniam por lá. Assistiu à retirada cautelosa dos franges, que contornaram Mocimba longe do alcance das suas defesas. Foi uma precaução desnecessária. Os guerreiros da lua ainda dormiam. Ninguém parecia ter-se dado conta de que a frota dos alvos regressara àquelas águas, e fundeara à entrada da baía, junto ao ilhéu da Lua. Só depois de ter visto as duas embarcações desaparecerem atrás duma ponta arborizada da ilha é que se dispôs a subir a alameda que levava ao palacete de Sacoeja. Os guardas ainda tinham os olhos pesados de sono, e estranharam-no a uma hora tão temperana; o seu amo devia estar a preparar-se para as primeiras orações. Mas, calculando que o outro desejasse recebê-lo, franquearam-lhe a porta; mal ele se afastou, lavaram-se e estenderam no chão os tapetes puídos para o sabah.
Um criado veio ter com Mustafa ao pátio fresco e branco que dava para a entrada. Quando o mercador lhe disse ao que vinha, retirou-se, e foi espreitar os aposentos do soldão, para ver se Sacoeja já começara as suas preces. O mercador esperou, enquanto se ouviam as ladainhas subir das torres esguias da lua, cruzando monotonamente o espaço em todas as direcções. Mustafa orou em paz, rolando nos dedos as contas de ouro do terço novo, que comparara no mercado da cidade depois do encontro com Antão. Sacoeja não se apressou. Em dias como o de hoje, em que decidira não ir ao templo logo pela manhã, como era seu hábito, mantinha o mesmo costume das cinco preces diárias, tão certas nele como o ritmo secreto do tempo. No fim, calçou-se, enrolou-se nos seus panos mais frescos e procurou o mercador no pequeno pátio caiado da entrada.
– Os franges voltaram – disse-lhe Mustafa, mal o viu. – Devem estar outra vez ancorados no ilhéu da Lua. E, ou me engano muito, ou eles andaram esta noite em terra.
– O que quererão agora? – perguntou-lhe Sacoeja, vagamente inquieto com a notícia. – Achas mesmo que estiveram em terra? E a fazer o quê?
Mustafa pensou um instante, rolando o terço nos dedos.
– Deve ser por causa da água – respondeu-lhe por fim. – Não vejo outro motivo. Não há ali nada que se roube…
Sacoeja impacientou-se:
– Mas eles não deviam estar agora lá para o norte, a caminho de Quylee? O que é que fazem cá?
Mustafa acalmou-o:
– Não te exaltes, Sacoeja. Só te digo o que penso.
O soldão suspirou, esvaziando o peito de ar:
– Desculpa… É esta situação que me enerva – pediu-lhe, tentando sorrir. – Deves ter razão. O piloto, que não chegou a embarcar, disse-me que as reservas deles não lhe pareceram grandes. Ainda por cima, com esta lua, têm muita dificuldade em subir a costa.
Bateu palmas a chamar a guarda. Na altura em que já se julgava livre dos franges, ei-los que voltavam, e agora para ameaçá-lo na sua própria cidade.
[…]

GLOSSÁRIO:
Bõos Signaes, rio dos – possivelmente o Zambeze, Moçambique
franges – povos latinos, genericamente; portugueses
Lenho, ilhéu do santo – actual ilha de Goa, perto da ilha de Moçambique
lua – religião islâmica
Quylee, ilha de – Kilwa Kisivan, Tanzânia
soldão - sultão

Medina, Miguel (1990). Alem do Maar.
s. l.: Círculo de Leitores. pp. 73-76.

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