sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

António Ramos Rosa

É aqui: talvez uma cidade

É aqui: talvez uma cidade.
Mas sem ninguém.
É aqui que não estou, corro, caminho, espero,
paro de súbito. Escuto. Palpo
um tronco largo, uma respiração?
Aqui, sem corpo.

Mas insisto: é uma cidade.
Ou é, ela a cidade, ou a respiração,
ou é o tronco largo no meio dela?
É o corpo que não existe ainda.
E insisto: uma golfada de ar.
Acorda, move-te, corpo, cidade, tronco,
uma só respiração possível?

Eu não sei: é talvez uma cidade.
Alguém só que respira e não tem corpo.
E o tronco calmo onde pousar a mão
e lentamente abrir o espaço.
Mas quem respira? Quem move o braço
de um corpo que ainda não existe?

E se a cidade existe, o tronco existe,
em vão designo o que em vão existe.
Mas é no vão do corpo que respiro
o corpo que procuro nesta cidade.
E o silêncio que se cava junto ao tronco
abre-me o espaço desse corpo vão.
Aqui é que eu tento e corro, espero, caminho.
É aqui: talvez uma cidade.

António Ramos Rosa (1975). «E aqui: talvez uma cidade». In Respirar a sombra viva. Lisboa: Plátano Editora, p. 39.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

António Ramos Rosa

O ignorante absoluto o imóvel nómada
no imponderável acorde da deriva da terra
com as velas do sangue voltadas para o mar
na incendiada inércia da sombra como um fruto
ouve o único canto que nunca se repete
e os lúcidos animais acaçapados
por detrás de arbustos invisíveis
A sua lucidez é o abandono às marés sem margens
e a sua sabedoria uma distracção que o conduz ao centro

António Ramos Rosa (1996). «O ignorante absoluto o imóvel nómada». In: Delta seguido de Pela Primeira Vez. Lisboa: Quetzal Editores, p. 23.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

António Ramos Rosa

No limiar

Uma qualidade nocturna e quase amante
talvez violenta e no entanto branca
desperta uma abóbada de arvoredo
um rumor lento uma nudez de sono
e grandes tufos de contornos negros

É um domínio aqui uma convergência de fluxos
Nenhuma imagem se abre na clareira igual
Uma palavra ou o silêncio a ligeireza do ar.

António Ramos Rosa (1983).  «No Limiar». In Gravitações. S.l.: Litexa, p. 55.


terça-feira, 7 de janeiro de 2014

António Ramos Rosa

Não pensar
é mais difícil
do que pensar
e o pensamento
é tanto mais rico e fluído
quanto inclui em si
o vazio do não pensar

António Ramos Rosa (2012). Em torno do imponderável. S.l.: Edições Licorne, p. 29.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

António Ramos Rosa

Ninguém morre
como se chegasse
ao fim da vida
A morte é sempre um corte
extemporâneo


António Ramos Rosa (2012). Em torno do imponderável. S.l.: Editora Licorne, p. 23.