Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde
[excerto]
Capítulo I
Brilha o céu, tarda a noite, o tempo é
lerdo, a vida baça, o gesto flácido. Debaixo de sombras irisadas, leio e
releiro os meus livros, passeio, rememoro, devaneio, pasmo, bocejo, dormito,
deixo-me envelhecer. Não consigo comprazer-me desta mediocridade dourada, pese
o convite e o consolo do poeta que a acolheu. Também a mim, como ao Orador,
amarga o ócio, quando o negócio foi proibido. Os dias arrastam-se, Marco
Aurélio viveu, Cómodo impera, passei o que passei, peno longe, como ser feliz?
Mara, mais além, borda, sentada numa
cadeira alta de vime, junto aos degraus da porta. Há pouco, ralhava com as
escravas. Agora ri-se com as escravas. Em breve ralhará com as escravas. Do
local em que me encontro não consigo ouvi-la, mas quase adivinho as razões dos
risos e dos ralhos. É-me agradável saber que Mara está perto, e reconhecer-lhe
tão bem, desde há tantos anos, os trejeitos e os modos.
Momentos atrás, sem nenhuma razão
especial, veio até junto de mim, com o seu animal de regaço que é agora um gato
cinzento, depois de, em hora nefasta, ter perdido a rola, muito alva, que lhe
vinha comer à mão. Este bizarro animal, que dizem de origem egípcia, é uma
espécie de pantera em miniatura que conserva todos os rompantes da fera e que,
como ela, se compraz na crueldade e no rasgo imprevisto. Ora se relaxa,
pacificado, em languidez esparramada, num convite ao sossego universal, ora
salta de garras prestes, orelhas derribadas, pêlo tufado, colmilhos em ameaça.
Não responde pelo nome e, apesar da sua pequenez, põe em respeito os cães de
guarda quando os enfrenta. Foi um mercador que o deixou aí, como reconhecimento
pelas compras avultadas, porventura excessivas, a que Mara se prestou. Eu
confesso que encaro este animal estrangeiro com alguma desconfiança. Ainda não
faz parte da casa, nem sei se algum dia fará…
Mara admira-se de eu estar às voltas com
a Tyrrenika, infindável anedotário
etrusco do imperador Cláudio. Que proveito me trará o esforço, pergunta, se
temos tão raros convidados a quem deslumbrar? Num gesto faceto, desdobra um dos
rolos, soletra umas palavras ao acaso, ri e deixa-o rebolar pelo tampo da mesa.
Logo as unhas afiadas do gato ressaltam, aduncas, e se preparam para grifar o
papiro, como já tinham antes marcado os braços de Mara. Protesta. Mara
aconchega o bicho ao colo e deixa-me, numa pequena corrida. Rito quotidiano,
conhecido, trivial e amável. Mara, aprazível, afirmando-me a sua solicitude…
Preserva Mara uma vivacidade juvenil que
ainda me espanta, ao fim de todos estes anos. Nunca teve paciência para desenrolar
um livro; boceja e adormece quando chamo um escravo para ler algum trecho,
mesmo solerte e ligeiro. Aborrece-se nesta pasmada villa, mas nunca admitiria
que se aborrece. Não lhe ocorre queixar-se. «Onde Gaio está, Gaia estará».
Assim foi educada. Sob aquela futilidade alegre e volátil, velam solidíssimos
princípios, ancestrais, e uma recôndita lucidez que só se expõe quando motivos
ponderosos a convocam. Sempre contei com a estrénua lealdade de Mara, embora
ela não saiba definir o vocábulo lealdade, nem dissertar sobre ele, nem use
nunca o termo «estrénuo».
Em boa verdade, os Etruscos de Cláudio
interessam-me de somenos e a prosa dele flui tão entaramelada como dizem lhe
saía a fala. Mas vou lendo, folha a folha, passo a passo, com uma aplicação de
discípulo em tormentos de trabalho marcado e férula à espreita. Não tenho outra
razão para isso, senão entreter brandamente o meu tédio, que ainda mais se
avantajaria naqueloutros portes de caçador ou arroteador de solos ou edificador
de pedras, ou diligente administrador de agros, ou praticante de qualquer
actividade própria à minha condição… Começada um dia a leitura, impõe-se-me
levá-la até ao fim. Assim me educaram e nessa pertinência me reconheço.
Propus-me um livro? Há que lê-lo!
[…]
Carvalho, Mário de (1994). Um Deus Passeando pela
Brisa da Tarde.
Lisboa: Editorial Caminho.
pp. 13-15.
Páginas
Paralelas:
Informação sobre esta obra, “a mais premiada do autor” – nova edição da Porto Editora
(2013)
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