Fazes-me Falta
[excerto]
1. Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus –
mesmo que, como foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida inteira.
Quando o pior acontecia, aquele sorriso descia às minhas trevas com um soluço
de baloiço, um gingar de gonzos arrancado às cordas da infância. Eu sentava-me
nele e subia, balouçando, até à luz. O pior aconteceu-me cedo, tive sorte. Deus
procura primeiro os que sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque
os outros sabem demasiado para poderem ser salvos.
Tu dizias que era ao contrário:
que Deus nasce da ignorância própria dos sofrimentos prematuros. Mas tu, meu
aluno dilecto, cedo te deixaste povoar pelo excesso do saber. Deus não sabia
nada do Universo quando o criou. Imagino que se sentiria só. Imagino que num
momento impreciso essa solidão se terá tornado maior do que Ele próprio,
estourando numa gigantesca flor de luz. E imagino-O, depois, tentando dar um
sentido particular a cada uma das pétalas dessa luz dispersa. Agora que saí do
corpo que fui – para me tornar pólen, poeira nos teus olhos, pura imaginação de
mim – imagino-o melhor ainda, ébrio de luz, lúcido, encandeado por um Lúcifer
oculto e criador incrustado no seu próprio ser, em estado de paixão com a
história desencadeada pela sua omnipotente solidão. E balouço no Seu sorriso
outra vez, a vez definitiva porque o meu corpo está lá em baixo, num caixão,
contemplado e lembrado e chorado pela última vez.
[…]
1. Estou sozinho. Sozinho com o
coração em bocados espalhados pelas tuas imagens. Já não posso oferecer-te o
meu coração numa salva de prata. Alguma vez o quis? Alguma vez o quiseste? Dava-me
agora jeito um deus qualquer para moço de recados. Um deus que te afagasse os
cabelos e me recordasse como eram macios. Um deus que me libertasse desta
imagem fixa do teu corpo encaixotado. Logo tu, que tantas vezes te rias daquilo
a que chamavas o meu «encaixotamento compulsivo»:
– Um
dia chego cá e encontro-te no meio dessa papelada, morto de cansaço, pronto a
encaixotar. Olha, eu é que não te empacoto – ganhei medo a mortos.
Sempre te disse que o medo atrai a desgraça
– podes rir-te. Ri agora tudo que ninguém te ouve. Isso; se o teu Deus existe
solta uma gargalhada forte para que eu acredite. Mas não, é melhor que não te
incomodes: essa gargalhada póstuma destoaria do meu belo arquivo de gargalhadas
tuas. Estragava-lhe a estética, entendes? E a estética, para falarmos com
franqueza, nunca foi o teu forte. Não suportavas as meias-tintas. Odiavas a
renúncia engatilhada sobre os paradoxos da vida. Não podias ter morrido de uma
coisa menos esdrúxula, por exemplo? Não podias aguardar a dignidade das
primeiras rugas? Que tendência para o kitsch,
minha querida – mas Deus sai-se sempre em kitsch,
não é verdade?
Descansa em paz. […]
Pedrosa, Inês (2002). Fazes-me Falta (8ª ed.).
Lisboa: Publicações Dom
Quixote. pp. 9-12.
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