terça-feira, 2 de abril de 2013

Faíza Hayat
Recordando as suas “Conversas com o espelho” e a última edição da Revista Xis, do Público (17.02.2007)
O homem dos meus sonhos
Sonho com um homem com a cabeça entre as mãos. Sorri para mim. Não tem mãos, não tem cabeça, sorri com o que lhe resta: a vontade de sorrir. Mais tarde hei-de encontrar esse mesmo homem num jardim de Lisboa, a dar de comer aos pombos. Reconheço-o, não obstante nunca lhe ter visto o rosto, pelo sorriso – pela vontade com que sorri. O homem vem ter comigo. Fala-me em inglês:
“Bom dia! Não nos conhecemos?”
Digo-lhe que não. Julgar-me-ia louca se lhe dissesse: “Estive consigo ontem, num sonho. Você estava sentado com a cabeça entre as mãos, mas não tinha cabeça nem mãos. O que tinha era esse sorriso”.
O homem hesita um pouco. Por fim recua: “desculpe, deve ser engano”.
E então, volto a sonhar com ele. Desta vez sonho-o ainda sem cabeça, mas já com as mãos. Umas belas mãos, ao mesmo tempo fortes e delicadas, de dedos longos. Pombas volteiam em seu redor, não como as pombas volteiam em torno de alguém, ou seja, num fragor de asas e vis dejectos, mas como borboletas – silenciosamente. É um sonho, tenham paciência, e num sonho as pombas podem voar como borboletas. Acho que as minhas, inclusive, tinham asas de borboleta. No meu sonho eu apaixono-me por aquele homem. Apaixono-me por aquele homem com uma tal intensidade – ferocidade, desvario, inquietação, escolham o termo que preferirem – que quando acordo, de manhã, continuo a pensar nele. Ainda estou a pensar nele quando o vejo, por acaso, à tarde, no mesmo jardim onde antes o encontrara com as pombas. Está agora sentado num banco, a ler um jornal, e ergue a cabeça quando passo. O seu olhar pousa no meu e logo o meu coração dispara num tropel. Tenho a certeza que corei, que estou estupidamente corada, e apresso o passo. Não olho para trás, mas sei que ele continua a olhar para mim. Sinto o seu olhar preso à minha nuca. Nessa noite preparo um banho, com óleos aromáticos, e deixo-me ficar muito tempo, a flutuar, de olhos fechados. Visto o meu pijama mais bonito. Um presente de despedida de um antigo namorado com sentido de humor. O homem reaparece no meu sonho, finalmente completo, rosto e mãos, e inclusive com um nome e uma profissão. Chama-se Filipe e é um domador de pesadelos, o que, no mundo dos sonhos, parece ser ofício muito respeitado. Quanto mais o conheço mais me apaixono. Tudo nele está feito para me agradar, desde o tom da sua voz, ao tom da sua pele. Reconheço-me nas suas indignações, partilho as suas paixões, aprendo com ele artes e mistérios para os quais, sinto-o, já estava preparada desde que nasci. Acordo feliz, iluminada, e só quando o procuro ao meu lado, e o não encontro, me dou conta de que acordei no lado errado. Todo o dia me dói o peito. Sinto a falta dele, angustiadamente, como um paraquedista, a meio do salto, sente a falta do paraquedas.
À noite, no jornal, encontro o rosto de Filipe. É australiano, psiquiatra, e veio a Lisboa apresentar um livro. Já regressou ao seu país. Deito-me, derrotada. Depois reflicto um pouco e recupero o ânimo. Talvez se o sonhar de novo, se o sonhar bem sonhado, ele reapareça. Dessa vez não o deixarei partir. x
Hayat, Faíza (2007, 17 de fevereiro). O homem dos meus sonhos. Xis, 398, 4.

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