quinta-feira, 31 de maio de 2012

Soeiro Pereira Gomes, "Esteiros"

Verão
     [...]
     Como bando de pardais, a malta assaltou o vale, que era então, todo ele, frutescente pomar. Já as nespereiras, tempos antes, haviam sofirdo grave desbaste, e as cerejeiras também. Mas eram as uvas que, a todas as horas, mitigavam o apetite dos garotos. Dizia-se até que a vinha velha do Antunes, desmurada, nunca chegava a ser vindimada por ele.
     Gineto preferia, porém, as quintas frondosas do Castro e de outros, que tinham uvas de casta,  doces como o mel. Vestiu um casacão velho que lhe dava pelos joelhos, roubado ao pai, e escalou o muro, deixando os outros à espera na estrada.
     Sor Miguel, dê-me um cachinho de uvas... – gritou ele, empoleirado. Uma pausa e de novo a lamúria: – Sor Miguel...
     Ninguém respondeu. O silêncio e as portas encerradas da moradia indicavam que o caseiro devia estar longe, ou fora da quinta. Saguí informou que também o canzarrão estava preso no jardim.
     Saltaram à vinha. Gineto correu por entre as cepas, rojando o casaco, em busca de uvas moscatel. Primeiro, comeu; depois, pôs-se a encher as pregas da camisa, mantendo o casaco vazio, para não lhe tolher os movimentos.
     Junto ao muro, os companheiros depenicavam e riam, uns sentados, de cócoras outros, mas todos à vontade, como se a quinta lhes pertencesse. Naquele dia, julgavam-se donos do mundo. [...]




quarta-feira, 30 de maio de 2012

Eugénio de Andrade, "Leonoreta"

Fonte da imagem

Borboleta, borboleta,
flor do ar,
onde vais tu, que me não levas?
Onde vais tu, Leonoreta?

Vou ao rio, e tenho pressa,
não te ponhas no caminho.
Vou ver o jacarandá
que já deve estar florido.

Leonoreta, Leonoreta,
que me não levas contigo...




terça-feira, 29 de maio de 2012

Eugénio de Andrade, "Frutos"


Jorge Ulisses, 1980

Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

J. P. Mésseder e M. Bacelar, "Gatos, lagartos e outros poemas"



A meio da noite

Desperto no escuro,
um gato por guia,
e saio de casa,
p'ra noite fria.

Agora há tempo
para uma surtida,
que a noite é uma casa
larga e comprida.

Ouvidos alerta,
tão fino o olfato:
latidos em eco,
odor de outros gatos.

Roçamos nas planatas,
ouvimos os grilos,
seguimos no escuro
veredas e brilhos.

Mais uma folhinha,
ali uma cova.
Na casa da noite
sabemos quem mora...

Sentados no muro
lavamos o pelo,
lambemos as patas
com todo o zelo.

Que bom acordar
a meio da noite,
sair (não é sonho!)
com um gato por guia.

E haver lá no alto
a lua, as estrelas,
parar no escuro
a olhar para elas.

Mésseder, João Pedro (texto) e Manuela Bacelar (ilustração) (2012).
Gatos, Lagartos e outros poemas. Porto: Trampolim Edições: p. 24

Palavras Andarilhas 2012

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Roy Lichtenstein. "Drowning Girl" (1963)




Roy Lichtenstein (1963). "Drowning Girl". Nova Iorque: Museum of Modern Art.


quinta-feira, 24 de maio de 2012


Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
          Era uma vez uma princesa
          no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, «Poema à mãe», In Poesia. S.l. Fundação Eugénio de Andrade, pp. 47-48.

quarta-feira, 23 de maio de 2012


Bocage

Vai-te, fera cruel, vai-te, inimiga,
Horror do mundo, escândalo da gente,
Que um férreo peito, uma alma que não sente,
Não merece a paixão que me afadiga.

O Céu te falte, a Terra te persiga,
Negras fúrias o Inferno te apresente,
E de baça tristeza o voraz dente
Morda o vil coração, que Amor não diga.

Disfarçados, mortíferos venenos
Entre licor suave em áurea taça
Mão vingativa te prepare ao menos;

E seja, seja tal tua desgraça,
Que ainda por mais leves, mais pequenos
Os meus tormentos invejar te faça.


Fonte: Bocage (s.d.). “Vai-te fera cruel, vai-te inimiga”. In: Poesias. S.l.: Círculo de Leitores, p. 11.

terça-feira, 22 de maio de 2012


João Garcia de Guilhade

Ai dona fea, fostes-vos queixar
que vos nunca louv'en[o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei todavia;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus mi pardom,
pois havedes [a]tam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
vos quero já loar todavia;
e vedes qual será a loaçom:
       dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei
em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já um bom cantar farei
em que vos loarei todavia;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!



Fonte: João Garcia de Guilhade (s.d.). “Ai dona fea, fostes-vos queixar”. Cantigas Medievais Galeco-Portuguesas. Disponível em: http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1520&tamanho=13 (consultado a 20 de maio de 2012).






segunda-feira, 21 de maio de 2012


SONNET 130 - William Shakespeare

My mistress' eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lips' red;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damask'd, red and white,
But no such roses see I in her cheeks;
 
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that from my mistress reeks.
I love to hear her speak, yet well I know
That music hath a far more pleasing sound;
I grant I never saw a goddess go;
My mistress, when she walks, treads on the ground:
   And yet, by heaven, I think my love as rare
   As any she belied with false compare.
 

Fonte: William Shakespeare (s.d.). “Sonnet 130”. Disponível em: http://www.shakespeare-online.com/sonnets/130.html (consultado a 20 de Maio de 2012).



Soneto 130 de William Shakespeare (Trad. Ana Luísa Amaral)

O olhar da minha amada não se compara ao sol,
Mais carmim é o coral que os seus lábios carmim.
Se a cor da neve é alva, mortiço é o seu colo,
Se os cabelos são fios, fio negro o seu cabelo.
Vi rosas de Damasco cor de carmim e alvas,
Mas não nas suas faces vejo eu rosas tais,
E há em certos perfumes prazeres tantos e mais
Dos que, em hálito seu, a minha amada exala.
Adoro a sua voz, contudo, sei-o bem
Que a música possui um som muito mais belo.
Juro que nunca vi uma deusa a passar –
Quando anda, a minha amada caminha sobre o solo.
E contudo, por Deus, tão raro é o meu amor
Quanto os que ela desmente em falso cotejar.

Fonte: William Shakespeare (s.d.) “Soneto 130” (Trad. Ana Luísa Amaral). Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4217.pdf (consultado a 20 de Maio de 2012).


Página Paralela:

Soneto 103 de William Shakespeare lido por Alan Rickman




sexta-feira, 18 de maio de 2012

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Cagarro
Calonectris diomedea borealis (Cory 1881)

Ouça o som desta ave marinha sempre presente nas noites de verão dos Açores.

Fonte:

SIARAM
Sentir e Interpretar o Ambiente dos Açores
Através de Recursos Auxiliares Multimédia
SECRETARIA REGIONAL DO AMBIENTE E DO MAR – GOVERNO DOS AÇORES
Conteúdos disponíveis em siaram.azores.gov.pt

E conheça o projecto “Lua de Mel no Corvo”, da responsabilidade das “Ilhas Santuário para as Aves Marinhas”, e siga a história do nascimento e emancipação do pequeno cagarro Hypnos.
Páginas Paralelas:
Veja também o blogue “Geração Eco-Mouzinhos”, da Escola Básica Integrada Mouzinho da Silveira, no Corvo, e saiba como as crianças da ilha participam no compromisso por um planeta melhor… não na Lua, mas na Terra.
E descubra por que motivo o nome de Mouzinho da Silveira está ligado ao Corvo.
E depois, que tal ir à ilha do Corvo? É na Terra Não é na Lua!

quarta-feira, 16 de maio de 2012

“O Corvo”
Raul Brandão (in As Ilhas desconhecidas)
Ainda de noite, seguimos a caminho do Corvo, com o mar chocalhado, como se diz nos Açores. Este canal é amargo. Às cinco horas da manhã do dia 17 estamos à vista de duas manchas azuladas, Flores e Corvo, sob um céu velado e em águas revoltas. Uma hora depois distingo perfeitamente o cone de bronze truncado, com escorrências de verdete no alto. Não se vê uma árvore naquele enorme pedregulho batido pelas vagas. É com apreensão que desembarco no sítio mais pobre e mais isolado do mundo.
(…)
17 de Junho [de 1924]
Pedra negra, areia negra e um mar esverdeado, que de Inverno assalta, vagalhão atrás de vagalhão, este grande rochedo a pique, com fragas caídas lá no fundo e que as águas corroem num ruído incessante de tragédia. Céu muito baixo, nuvens esbranquiçadas. Braveza, solidão e negrume.
Uma única povoação de meia dúzia de ruelas fétidas, lajeadas do burgo, algumas com meio metro de largura, onde se fabrica o estrume. A igreja, um largozinho, e, logo por trás do povoado, o monte severo, erguido em socalcos e caído a um lado. A mesma labareda devorou tudo isto: os interiores, as paredes, os telhados. Velhas de lenço e, sobre o lenço, o xale escuro, homens de barrete, descalços e de pau na mão. De quando em quando, duma pequena janela, espreita a cabeça duma mulher ou o focinho duma vaca. As casas denegridas, onde vive o homem e o boi, tresandam a leite e a corte. Os rapazes cheiram a gado. À volta dos casebres meia dúzia de leiras de centeio e trigo divididas por muros de pedra solta. E tudo tão humilde, tão feio, tão só, que me mete medo. Um penedo e vento na solidão tremenda do Atlântico.
Não há mercado nem estalagem. Não há médico, nem botica, nem cadeia. As portas não têm chave. Não há ricos nem há pobres, e neste mundo isolado tanto faz ser rico como pobre: o homem mais rico do Corvo anda descalço como os outros e lavra a terra com os filhos. O pedreiro é pedreiro e lavrador, o ferreiro é ferreiro e lavrador, e morre à fome quem não fabrica os currais por suas próprias mãos. Ninguém se sujeita a servir – mas todos os vizinhos se ajudam: quando toca o sino a rebate, o povo acode a destelhar a casa, a construir a corte ou a levantar o socalco.
(…)
20 de Junho
            Vou-me habituando a ficar com a porta aberta. Na primeira noite tive medo. Agora durmo de um sono num colchão de palha milha, com a janela escancarada, por onde entra o jorro que sabe a mar e a que se mistura o cheiro bravo do monte. Também vou com os pastores e os lavradores sentar-me no Outeiro, onde está a Câmara, o Espírito Santo e a cadeia vazia (agora mora lá uma vaca), e ouço-os de roda nas banquetas tomando resoluções sobre a lavoura e a terra. Aí se juntam de manhã antes de partirem para o Fojo ou à tarde quando recolhem. Sinto-me pequeno ao pé do António da Ana, de barba curta e grisalha, do Santareno, que parece um apóstolo, do Joaquim Valadão, do Manuel Tomás, do sapateiro a arrastar a perna, dos velhos baleeiros de pêra e barrete às riscas na cabeça, todos duma grave compostura – fisionomias de santos ou pedintes, onde há qualquer coisa de empedrado.
(…)
            Aqui acabam as palavras, aqui acaba o mundo que conheço; aqui neste tremendo isolamento onde a vida artificial está reduzida ao mínimo só as coisas eternas perduram. Não se pode fugir à monotonia da existência, à solidão que nos cerca, à sólida arquitectura dos montes que apertam e esmagam. Sempre presentes o plano revolto e amargo das ondas e a povoação isolada e denegrida. Passam-se meses sem notícias do mundo, e com as Flores comunica-se com fogaréus que se acendem nos altos, porque o canal é largo e tão perigoso que arroja de Inverno os peixes mortos à praia. É aqui que o Tempo assume proporções extraordinárias. Vejo diante de mim a figura monstruosa, que suprimimos da existência fútil, arredando-a e esquecendo-a, o que no Corvo preside a todos os actos da vida. O Corvo não tem peso no mundo, mas nunca senti como aqui a realidade e o peso do Tempo. Sob o seu domínio todos caminham, repetindo os mesmos gestos e as mesmas palavras, e arrastando o mesmo fardo sem levantarem a cabeça nem desatarem aos gritos.
            Estas figuras despidas e trágicas são tremendas como problemas insolúveis. Erguem-se diante de mim, a arredo tudo, esqueço tudo para os interrogar. Não que eles me saibam responder – eu é que hei-de responder a mim próprio, porque foi isto que me trouxe ao Corvo.
Raul Brandão (s/d). As Ilhas desconhecidas. Lisboa: Perspectivas e Realidades. pp. 25-35.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Os prodígios da ilha do Corvo
Maria João Avillez
Dois euros deviam chegar para o parquímetro, não me antevia sentada no cinema as três horas e dez minutos do filme, desde quando é que a ilha do Corvo pedia tal fôlego, mais de três horas aquela pedra no Atlântico habitada por engano, quantos eram os corvinos meus distantes irmãos, língua e pátria comum, 400, 400 e tal?
Mas quase logo a seguir e o espantoso é que foi mesmo quase logo a seguir, enterrada na penumbra da sala, percebi que nenhum adjectivo – sempre uma armadilha é certo – chegava ou servia. E, de resto, elegê-los segundo qual fonte, se havia tantas: a que jorrou assombro, a que derramou espanto, a que trouxe estranheza? A da compaixão, a da pungência? A do esquecimento? Não escolho, não sei. Fazê-lo seria trair os dons que brotaram dessas fontes. Prefiro a fidelidade – única maneira de os merecer – aos dons e prodígios de que é feito este filme que está sempre a lembrar-nos que é na Terra não é na Lua que aquilo existe. E se parece a Lua, santo Deus, ou seja lá onde for, mas não neste mundo… Um bocado de rocha arredondada e breve, que dá pelo nome de ilha, submersa na zanga do mar que ali parece não conhecer outra forma de vida senão a da fúria e do seu brado; quase nenhuma árvore e que árvores querem partilhar aquele molhado desamparo? Lá ao cimo, a coroa da cratera do que foi um vulcão, cá em baixo, uma branca mancha de casas, atemorizadamente unidas umas às outras, contra marés e ameaças. No meio… nada, ou quase. (…) Os da ilha ficam, os outros, sempre escassos, sempre fugidios, partem.
Mas Gonçalo Tocha ficou. Ficou muito tempo, voltou muitas vezes. Eu agradeço-lhe, nem ele sabe quanto. E ainda mais que tenha querido filmar tudo, como logo avisa: o mar e o vento, o céu e a terra, as vacas e os porcos, os rostos e gestos, uma motorizada que desce, uma camioneta que sobre no traço negro da única estrada. Uma porta que se abre, a récita sincopada do terço, dois vultos na rua deserta, a televisão acesa no café, uma menina que aprende canto, um alemão que toca num piano desafinado, a morte selvática do porco, um inglês silencioso que ama pássaros, o cais sempre afogado em ondas que tudo varrem e afogam, ilha de sempre inverno. Uma mulher que cose, outra que faz queijo, outra que fabrica um barrete de lã azul e há-de estar a fazê-lo enquanto durar o filme, um não avança sem o outro, irmãos de sangue nesta saga. Sim, as gentes dali. Um vagar que nenhum ponteiro mede – e porque se haviam de apressar? – uma solidão sem medida, olhares vazios por nunca haver “amanhãs” e já nem se lhes pedia que cantassem, apenas que existissem. E a espessura e a força e a aspereza que de tudo isso escorre. Para o mar, para o nada, para nós.
(…)
Maria João Avillez (27.04.2012). Os prodígios da ilha do Corvo. Público. p. 53.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Semana dedicada ao Corvo, o território mais ocidental e "mais remoto" de Portugal/Europa... Na Terra, não na Lua!
A propósito do filme de Gonçalo Tocha "É na Terra Não É na Lua", vencedor do Grande Prémio Cidade de Lisboa do DocLisboa 2011 e já com quatro prémios internacionais, em Locarno, Buenos Aires, San Francisco e Madrid.

notas do diário
gonçalo tocha

Relembro como aqui chegámos, vindos do nada,
sem conhecer ninguém, a entrar pouco a pouco
e cada vez mais na vida das pessoas.
Sinto que este filme não é a representação do Corvo
mas a imagem da minha passagem pelo Corvo.
É esta ilha dentro de mim.
Mas eu aqui sou sobretudo uma câmara de filmar.
O mar do Corvo aberto em todos os lados.
A caminho faz chuva, agora faz sol na água.
A grande emoção da meteorologia.
O barco “Santa Iria” chegou com a mercadoria.
Os nossos quartos virados para o cais. Acordo sempre
com a luz do sol nascente na falésia, toda a vila era aqui,
virada para o mar.
No Corvo as casas não precisam de número na porta.
Rua das Pedras, Largo do Outeiro, Canada da Rocha, etc…
As pessoas, as conversas, os petiscos, tudo sempre em
círculos.
Isto são dois mundos, não há explicação. A vila é só um ponto.
 Lá em cima os campos, é todo um outro olhar
de verde e vertigem.
Como e porquê cheguei até aqui ainda é um mistério para mim.
Ver tudo, viver tudo. Esta ilha é uma concha, para quê sair?

Excerto do Flyer do filme É NA TERRA NÃO É NA LUA de Gonçalo Tocha (2011).

Gonçalo Tocha. Flyer do filme É NA TERRA NÃO É NA LUA (2011)
Páginas Paralelas:

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Blogue Ciberescritas, "Uma vida quase igual às outras"

 "Com o seu primeiro romance “O teu rosto será o último” João Ricardo Pedro con­quis­tou o Prémio Leya 2011. Desem­pre­gado, resolveu con­cretizar o seu sonho. Con­versa real­izada dias depois da atribuição do prémio em Out­ubro do ano passado.
João Ricardo Pedro, 38 anos, Prémio Leya 2011, está à porta da Paste­laria Car­cas­sone, em Lis­boa, de óculos escuros. Pas­sou mal a noite. Dormir tem sido difí­cil desde o dia em que o júri do Prémio Leya 2011 deliberou por maio­ria atribuir os 100 mil euros ao romance que pas­sou os últi­mos dois anos a escr­ever, “O teu rosto será o último”.
É uma grande mudança na sua vida. Durante dez anos tra­bal­hou como engen­heiro elec­trotéc­nico e, em 2009, houve um des­ped­i­mento colec­tivo na empresa onde tra­bal­hava. “Fui nessa leva. Fiquei umas horas abananado: dois fil­hos, casado, com uma casa por pagar, era uma situ­ação com­pli­cada.” Nessa noite decidiu que não ia come­ter o erro de andar deses­per­ada­mente à procura de emprego. Quando perce­beu que gostava mesmo de livros, já tra­bal­hava numa empresa de tele­co­mu­ni­cações. “Uma data de pas­sos arrisca­dos que eu podia ter dado no final da ado­lescên­cia, tive von­tade de os dar aos trinta e tal anos, já casado e com fil­hos. Muda muita coisa, já não se é uma pes­soa soz­inha…” Por isso, naquela noite em que se viu sem emprego, João Ricardo Pedro tomou uma decisão: “É amanhã. Vou levar os miú­dos à escola, volto para casa e começo a escr­ever um livro.”
No dia seguinte, a mul­her chegou a casa e perguntou-lhe: “Então, já começaste a procu­rar emprego?” João respondeu-lhe: “Não. Come­cei a escr­ever um livro”. Ela olhou-o demor­ada­mente e fê-lo prom­e­ter que iria escr­ever uma página por dia. Durante dois anos, João escreveu mil­hares de pági­nas. A maio­ria foi para o lixo. [...]" Pode continuar a ler neste endereço, com video.

terça-feira, 8 de maio de 2012

António Lobo Antunes, "Pensamento positivo, meu amigo, pensamento positivo"

Nunca me foi tão difícil escrever uma crónica: três dias a rasgar papel. Normalmente fico uma hora ou isso, de caneta suspensa, e depois as palavras começam a sair sozinhas. Esta não, e já estou farto de deitar frases para o lixo. Julgo que se deve ao facto de ter demasiadas coisas dentro de mim, de viver uma altura difícil, de me achar melancólico e revoltado. Melancólico com a minha situação, revoltado com a situação do meu país. É raro o dia em que não me pedem

- Não me arranja um emprego?

a mim, que não possuo poder nenhum, e lá fico a ouvir histórias desesperadas e tristes. Os portugueses estão a sofrer muito, e o sofrimento dos portugueses é mais importante do que o meu: que direito tenho de me queixar seja do que for? Quanto a mim não consigo fazer nada, quanto aos outros a minha importância colectiva é nula. Um amigo médico, por exemplo

- Fale do que se está a passar na Saúde

como se aquilo que eu escrevesse mudasse alguma coisa. Não muda. Sou apenas um homem que faz livros, preso por um contrato que assinei sem ler, como de costume, a uma editora que me não agrada. Não tenho grandes ilusões. Nem pequenas, aliás. A árvore, em frente da minha janela perdeu as folhas: ramos torcidos, sombras de pássaros nem sonhar. Eu reflectido no vidro, sentado a esta mesa. Esferográficas, páginas, uma lupa, porque as primeiras versões são numa letrinha minúscula que, por vezes, me custa ler. Trago uma espada no peito. Volta e meia torce-se nos pulmões. E lá está a crónica a resistir. Não quer ser feita, tem a consciência de não valer grande coisa. E, mesmo que valesse grande coisa, o que valia? Não há imortalidade: há o silêncio que se vai espessando à volta de um nome, até o nome desaparecer por inteiro. E, até desaparecer, tanta inveja, tanta mesquinhez, tanta patetice. Para quê? A nossa existência é um pequeno evento pedestre: quem se rala? Os outros, por muito que nos queiram, estão de fora. E, depois, partem, construindo-se uma nova alma. Aqueles de quem gostei tornaram-se ausências que se estreitam. Continuo a lembrar-me deles: vai doendo menos. Vai doendo menos? Vai doendo menos. Quem se lembrará de eu pequeno?

- Fale do que se está a passar na Saúde

e qual saúde, Zé? A nossa, a dos outros? Lembro-me que na primeira urgência interna que fiz no Hospital de Santa Maria, depois do curso, morreram seis doentes. Um médico, no dia seguinte

- Eh pá você bateu o record

e eu, que era um miúdo, atarantado com a minha proeza.

- Não me arranja um emprego?

porque o subsídio acaba daqui a nada e depois o que faço eu, diga lá? Aos quarenta e cinco anos quem me dá trabalho? Ninguém, claro. É capaz de haver uns contentores do lixo com restos de comida, e também se podem comer os filhos, como propunha Swift para combater a fome na Irlanda. E quando os filhos se acabarem coma-se a si mesmo. Ossinhos dos dedos chupados um a um. Nunca me foi tão difícil escrever uma crónica. Olhe, já agora experimente comê-la embora deva saber mal como rabo de gato e não alimente nada. Estou a compor isto enjoado de mim, embora tenha batido um record. Seis pessoas é obra. Aguenta mais um mês, António, e logo sabes. Talvez te comam numa urgência interna.
- Como se chamava aquele?
- Não me vem agora o nome mas escrevia livros.
- Desses que a gente gosta?
- Não, dos complicados, dos que dão trabalho.
Livros que não falavam, ouviam. Eu prefiro coisas que distraiam, para maçadas basta a vida. Conselho de um editor

- Publique histórias leves, histórias que distraiam

E tem razão, para maçadas basta a vida, dêem-me episódios que me divirtam, que chumbada pensar.

- Não me arranja um emprego?

um emprego, um empregozinho, dinheiro para pagar as contas, seja o que for preferível a esta angústia, tudo é preferível a esta angústia. E tem razão. Tudo é preferível a esta angústia, tudo é preferível a esta miséria.

- Fale da Saúde

fale da Saúde, da electricidade, dos transportes, da prestação da casa, da prestação do carro, da prestação da máquina de lavar, dos preços no supermercado, dos sapatos que o meu marido precisa, da penúria em que ando. Isto não é uma crónica, é um gemido indistinto, a minha mãe

- Não compraste umas hortaliças, filho?

o carro parado há dois meses que não há para a gasolina. Já não haverá mais para a gasolina. Talvez para uma garrafinha de petróleo

(pode ser que exista quem fie)

verter a garrafa em cima de mim e chegar-lhe um fósforo. Depois uns tempos na enfermaria até as queimaduras do terceiro grau resolverem o assunto. E não é preciso emprego. Quer dizer, já não é preciso emprego. Quer dizer, já não é preciso preocuparmo-nos com a saúde. Já não é preciso comer o filho. Já não é preciso comer nada. Nem acabar esta crónica. Nem rasgar papel. Nem deitar períodos para o lixo. Nem estar à espera do exame no mês de abril. Nem ter demasiadas coisas dentro. Nem de não estar satisfeito com a editora que, essa sim, ficará satisfeita dado que quando um escritor pifa vende mais e é maçador falar nisto mas vender é importante. A cultura é muito bonita porém, como deve calcular, como suponho que calcula, como calcula com certeza, é necessário ganhar a vidinha. Nunca lhe foi tão difícil escrever uma crónica? Pois olhe, já a terminou, vê, você lamenta-se, lamenta-se, mas acaba por cumprir o trabalho. Muito gostam os artistas de choramingarem.


Ler mais: http://visao.sapo.pt/pensamento-positivo-meu-amigo-pensamento-positivo=f660588#ixzz1uXqLqDow