Nuno Júdice
Carta de Orfeu a Eurídice
[excerto]
[…]
7
Iludia-me.
A morte, que é o fim
do amor,
corria à solta nos temporais
da alma.
Eu podia ter uma consciência
da
sua presença nalguns intervalos bruscos,
quando
os teus passos me faltavam, e
só
uma nova respiração, atrás de mim, me
restituía
o ânimo da ascensão. Tu,
liberta
dessa morte que te prendia os lábios,
dizias-me:
não me deixes! Como se fosse
preciso
dizê-lo! E não fosses tu a única
razão
dessa viagem a que dei o nome
vida,
sabendo que a sua única verdade é esse
amor.
Porém, os nossos lábios não se
encontravam
na certeza do tempo.
O
futuro instalou a sua distância naquilo
que é
o presente, com a sua duração inscrita
no destino
dos que conheceram uma
coincidência
de um e outro, o olhar uníssono
dos
amantes, o brusco repouso de uma
ânsia
de espaço. Aqui, a distância é o que não
separa;
o medo da mudança dissipa-se;
e a
recordação é o que está depois do que foi
vivido,
como se fosse a memória a construir
o
dia de amanhã.
Quis
arrancar-te, assim, ao destino ― e
libertar-me,
eu próprio, da sua sujeição. Quantos
rostos
se fixaram no teu, para que em ti
eu
visse cada uma das imagens por onde passei,
restituindo-lhes
uma respiração humana. Procurei-te
enquanto
imaginei que me procuravas ― e
cada
passo que dava, na minha descida, afastava
tudo
o que eu perdia enquanto descia. Nesse outro
mundo,
em que nos reduzimos a nós, afastando
do
que somos tudo o que nos opunha,
não
dei por que um cansaço de ser me obrigava
ao
regresso. Tê-lo-ei feito cedo demais? Por
que
me voltei, então, como se soubesse que
as
sombras não pedem que as olhemos,
e deixei
que te prendessem com a sua
inquietação
de fumo?
No entanto,
um eco responde-me: estou
aqui.
E por trás dele outros ecos se sucedem,
multiplicando
os lugares, até ao fim
do
caminho. No teu quarto, prendendo o cabelo,
esperas
que um incêndio de poço entreabra
a
noite, e rompa os muros que o silêncio
ergueu
à tua volta. Mas o canto envolve-te: e
despe-te,
com a solidão dos seus dedos, até
à
nudez do caule.
Nuno
Júdice (2009). «Carta de Orfeu a Eurídice». In: Pedro, Lembrando Inês. Lisboa: Publicações Dom Quixote, pp. 57-58.
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