O Graxa
[…] [A]quele
garotão de ontem à tarde encheu-me as medidas. Era um engraxador aloirado, com
doze anos talvez, fato-macaco roto nos joelhos, olhos de zinco, pescoço
penugento e chancas enormes, que um polícia surpreendera empoleirado num
eléctrico, em riscos de cair estatelado no basalto.
O guarda, cara de boa pessoa, disfarçado
de voz de trovão, agarrou-o pelo braço:
– Seu malandrete! Venha já comigo para a
esquadra.
Molemente, com a caixa do ofício ao ombro,
o engraxador desceu do estribo e, com um desafio mudo nos olhos de metal,
deixou-se levar sem resistência.
Logo correu muita gente faminta de dor do
próximo. Os passageiros do eléctrico ergueram-se ávidos de Lágrima. As damas
extraíram os lenços das malinhas. E um senhor de idade que seguia num táxi mandou
parar o carro para sofrer melhor…
Contra o previsto, porém, o garotão não
soltava um queixume nem se espojava de protestos, ante o espanto do guarda, que
não escondia a sua incompreensão daquele silêncio fora de todas as regras. Que
diabo! Um garoto naquelas circunstâncias devia escabujar, chamar pela mãezinha,
avermelhar-se de gritos de aflição, varar o mundo, espolinhar-se na poeira da
rua. Assim não valia!
E para o acordar bem, para o trazer à tona
dos hábitos, sacudiu-o outra vez com falsa cólera:
– Percebeste? Vou meter-te no calabouço,
para aprenderes a não andar agarrado aos eléctricos. Percebeste?
Pois, sim, rala-te. Nem pio. Apenas os
olhos de cinza, secos e refilões.
Em redor, começava a criar-se um ambiente
de logro. Os passageiros, perdidas as esperanças de assistir ao espectáculo do
Lamento e da Lágrima a correr, desabavam os corpos nos bancos, em decepções de
fadiga. E até o pobre polícia, boa pessoa no fundo, com dois pequenos lá em
casa, que pretendia apenas pregar um susto ao malandrim, parecia acabrunhado.
Os seus olhos imploravam nitidamente: «Chora, malandro!», «Chora para eu ter
pena!», embora a sua voz trovejasse:
– Olha que vais para o calabouço!
Percebeste?
Mas o garotão, filho da teimosia dos pedregulhos,
das ervas e das manhãs duras de trabalho, mantinha-se firme no seu silêncio, a
olhar, com desprezo distante, para toda aquela matulagem que queria vê-lo
chorar, a ele, o «Graxa».
– Sai da minha frente, meu malandro, se
não racho-te! – acabou por exclamar o polícia em último recurso de desespero
fingido para se livrar daquela complicação. – Põe-te a cavar. Ala!
E outra vez feliz por não prender ninguém,
por persistir tudo na monotonia uniforme das mesmas ruas, na repetição sem
surpresas do mesmo todos-os-dias, desfez o ajuntamento com dois trovões:
– Vamos! Circulem! Circulem!
Circulei.
Mas, assim como quem não quer a coisa,
segui o engraxador de perto durante algum tempo.
A vitória dera-lhe maior lentidão nos
gestos e no andar. Torcia agora a boca, mais refilona sob os olhos escarninhos,
e escarafunchava nos bolsos, com uma das mãos, à procura de não sei quê.
Acabou por encontrar. Era uma beata, que
acendeu a custo, a puxar fumaças trabalhosas, crepitantes de saliva.
Depois, sempre com o «piano» às costas,
cuspiu com desdém longo e, do fundo do orgulho dos seus doze anos de calos, de
miséria, de trabalho, de chulipas, de trambolhões, de abandono, de pão duro, de
restos de rancho, de cama sem lençóis, envolveu o mundo num insulto roufenho:
– Palermas!
[…]
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