Arroz do Céu
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Ao longo dos passeios de Nova Iorque,
por sobre as estações e galerias do subway, abrem-se grandes
respiradouros gradeados por onde cai de tudo: o sol e a chuva, o luar e a
neve, luvas, lunetas e botões, papelada, chewing
gum, tacões de sapatos de
mulheres que ficam entalados, e até dinheiro. […]
O
limpa-vias trabalhava há muitos anos no subway,
sempre de olhos no chão. Uma toupeira, um rato dos canos. Picava papéis na
ponta de um pau com um prego, e metia-os no saco. Varria milhões de pontas de
cigarros, na maioria quase intactos, de fumadores impacientes, raspava das
plataformas o chewing gum odioso,
limpava as latrinas, espalhava desinfectantes, ajudava a pôr graxa nas
calhas, polvilhava as vias de um pó branco e misterioso, e todas as vezes que
o camarada da lanterna soltava um apito estrídulo – lá vem o comboio! – ele
encolhia-se contra a parede negra, onde escorriam águas de infiltração, na
estreita passagem de serviço. […] Sempre de olhos no chão, bisonho e calado,
como quem nada espera do Alto, e não esperava. A vida dele vinha toda do chão
imundo e viscoso. Nem sequer olhava a lívida claridade que resvala dos
respiradouros para o negrume interior, onde tremeluzem lâmpadas eléctricas,
entre as pilastras inumeráveis daquela floresta subterrânea metalizada: nunca
lhos tinham mandado limpar. […] Nem talvez soubesse que existiam os
respiradouros. Era estrangeiro, imigrante, como tanta gente, não brincara nem
vadiara na voragem empolgante das ruas da grande cidade, e vivia
perfeitamente resignado à sua obscuridade. […] Como tinha nascido na
Lituânia, ou talvez na Estónia, só falava em monossílabos; e, debaixo da
pátina oleosa e negra que o ar do subway
nela imprimira com o tempo, a sua face era incolor e a raça indistinta.
Antes disso tinha trabalhado em escavações, um «toupeira». Este emprego era
muito melhor, embora também fosse subterrâneo. E não tinha que falar o
inglês, que mal entendia.
Ora, à esquina de certa rua, no Uptown, há uma igreja, a de São
João Baptista e do Santíssimo Sacramento, a todo o comprimento de cuja
fachada barroca e cinzenta os respiradouros do subway formam uma longa plataforma de aço arrendado. Os
casamentos são frequentes, ali, por ser chique a paróquia e imponente a
igreja. O arroz chove às cabazadas em cima dos noivos, à saída da cerimónia,
num grande estrago de alegria. Metade dele some-se logo pelas grelhas dos
respiradouros, outra parte fica espalhada nas placas de cimento do passeio.
Depois dos casamentos, o sacristão ou porteiro da igreja, de cigarro ao canto
da boca, varre o arroz para dentro das grades, por comodidade. […] O que se derramou
no pavimento da rua, lá fica: é com os varredores municipais. […]
Aquela chuva de grãos atravessa as grades, resvala no plano inclinado
do respiradouro, e […] ressalta para dentro do subterrâneo, numa estreita
passagem de serviço vedada aos passageiros.
A
primeira vez que viu aquele arroz derramado no chão, e sentiu os bagos a
estalar-lhe debaixo das botifarras, o limpa-vias não fez caso […]. Mas como
ia agora por ali com mais frequência, notou que a coisa se repetia. O arroz
limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da
galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz? Intrigado, ergueu os
olhos pela primeira vez para o Alto, e avistou a vaga luz de masmorra que
escorria da parede. […] Era dali, com certeza, que caía o arroz, como as
moedas, a poeira, a água da chuva e o resto. O limpa-vias encolheu os ombros
sem entender. Desconhecia os ritos e as elegâncias. No casamento dele não
tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha.
Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém a
espiá-lo, abaixou-se, ajuntou os bagos com a mão, num montículo, e encheu com
eles um bolso do macaco. Chegado a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro:
alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para
dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e
levou-o para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a
ele, à patroa e aos seis ou sete filhos. […]
José Rodrigues Miguéis (1995).
“Arroz do Céu”.
In:
Gente da Terceira Classe. S. l.: Círculo de Leitores, pp.
63-66.
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