segunda-feira, 31 de março de 2014

Gonçalo M. Tavares

Os Soldados


Numa estação de comboios, dois soldados, debruçados sobre o guiché, compram os bilhetes. As suas mãos tremem. Estão nervosos.
Passa um homem, um vendedor, que traz três muletas na mão. Espera que os soldados comprem o seu bilhete para se aproximar, oferecendo as muletas por bom preço.
Mas os dois soldados têm as pernas intactas, caminham normalmente.



Gonçalo M. Tavares (2011). «Os Soldados». In: Short Movies. Alfragide: Caminho, p. 89.


quinta-feira, 27 de março de 2014


Nuno Júdice
Carta de Orfeu a Eurídice
[excerto]



[…]

7

Iludia-me. A morte, que é o fim
do amor, corria à solta nos temporais
da alma. Eu podia ter uma consciência
da sua presença nalguns intervalos bruscos,
quando os teus passos me faltavam, e
só uma nova respiração, atrás de mim, me
restituía o ânimo da ascensão. Tu,
liberta dessa morte que te prendia os lábios,
dizias-me: não me deixes! Como se fosse
preciso dizê-lo! E não fosses tu a única
razão dessa viagem a que dei o nome
vida, sabendo que a sua única verdade é esse
amor. Porém, os nossos lábios não se
encontravam na certeza do tempo.
O futuro instalou a sua distância naquilo
que é o presente, com a sua duração inscrita
no destino dos que conheceram uma
coincidência de um e outro, o olhar uníssono
dos amantes, o brusco repouso de uma
ânsia de espaço. Aqui, a distância é o que não
separa; o medo da mudança dissipa-se;
e a recordação é o que está depois do que foi
vivido, como se fosse a memória a construir
o dia de amanhã.

Quis arrancar-te, assim, ao destino ― e
libertar-me, eu próprio, da sua sujeição. Quantos
rostos se fixaram no teu, para que em ti
eu visse cada uma das imagens por onde passei,
restituindo-lhes uma respiração humana. Procurei-te
enquanto imaginei que me procuravas ― e
cada passo que dava, na minha descida, afastava
tudo o que eu perdia enquanto descia. Nesse outro
mundo, em que nos reduzimos a nós, afastando
do que somos tudo o que nos opunha,
não dei por que um cansaço de ser me obrigava
ao regresso. Tê-lo-ei feito cedo demais? Por
que me voltei, então, como se soubesse que
as sombras não pedem que as olhemos,
e deixei que te prendessem com a sua
inquietação de fumo?

No entanto, um eco responde-me: estou
aqui. E por trás dele outros ecos se sucedem,
multiplicando os lugares, até ao fim
do caminho. No teu quarto, prendendo o cabelo,
esperas que um incêndio de poço entreabra
a noite, e rompa os muros que o silêncio
ergueu à tua volta. Mas o canto envolve-te: e
despe-te, com a solidão dos seus dedos, até
à nudez do caule.


Nuno Júdice (2009). «Carta de Orfeu a Eurídice». In: Pedro, Lembrando Inês. Lisboa: Publicações Dom Quixote, pp. 57-58.

quarta-feira, 26 de março de 2014

José Pacheco

Capa do Fascículo n.º 1 da Revista Orpheu (1915)



José Pacheco (1915). Capa da Revista Orpheu, 1. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Orpheu_1_-_1915.jpg (acedido a 23 de março de 2014).

terça-feira, 25 de março de 2014

Andrew Bird

Orpheo looks back


And there are places we must go to
To bring these hollow words on back from
You must cross a muddy river
Where love turns to love turns to fear
They say you don't look
There's only one way
On back from on back from here
They say you don't look 
They say you don't look cause it'll disappear

And our eyes they keep on strainin'
As if to see what lies behind them
Through the shells of empty buildings and great columns of glass
They say you don't look
They say you don't look
Cause it'll drive you mad
And if it drives you mad
If it drives you mad
It'll prob'ly pass 


Andrew Bird (2012). «Orpheo Looks Back», Break it Yourself. Vídeo clip disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=cbk3skrVOto (acedido a 23 de março de 2014).

Letra disponível em: http://www.sing365.com/music/lyric.nsf/Orpheo-Looks-Back-lyrics-Andrew-Bird/50956F0C818027E048257A0C000E4E15 (acedido a 23 de março de 2014).

segunda-feira, 24 de março de 2014

Miguel Torga

Orfeu Rebelde

Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento.

Outros, felizes, sejam os rouxinóis...
 Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.

Miguel Torga (2002). «Orpheu Rebelde». In: Poesia Completa II. Lisboa: Círculo de Leitores, p. 555.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Dia Mundial da Poesia

António Ramos Rosa

Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira
com os contornos duros das consoantes
com a clara música das vogais
Por isso devemos lê-lo ao nível dos seus sons
e apreendê-lo para além do seu sentido
como se ele fosse um fluente felino verde ou com a cor do fogo
O que de vislumbre em vislumbre iremos compreendendo
será a ágil indolência de sucessivas aberturas
em que veremos as labaredas de um outro sentido
tão selvagem e tão preciosamente puro que anulará o sentido das palavras
É assim que lemos não as palavras já formadas 
mas o seu nascimento vibrante que nas sílabas circula
ao nível físico do seu fluir oceânico


António Ramos Rosa (2001). «Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira». In: Deambulações Oblíquas. Lisboa: Quetzal, p. 114.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Vhils e Pixelpancho

Vhils e Pixelpancho (2013). Participação no Under Dogs Urban Art Project. Lisboa (Avenida Infante Dom Henrique). Disponível em: http://www.alexandrefarto.com/ e http://www.under-dogs.net/ (acedido a 19.03.2014)

quarta-feira, 19 de março de 2014

José Rodrigues Miguéis

Arroz do Céu


     Ao longo dos passeios de Nova Iorque, por sobre as estações e galerias do subway, abrem-se grandes respiradouros gradeados por onde cai de tudo: o sol e a chuva, o luar e a neve, luvas, lunetas e botões, papelada, chewing gum, tacões de sapatos de mulheres que ficam entalados, e até dinheiro. […]
     O limpa-vias trabalhava há muitos anos no subway, sempre de olhos no chão. Uma toupeira, um rato dos canos. Picava papéis na ponta de um pau com um prego, e metia-os no saco. Varria milhões de pontas de cigarros, na maioria quase intactos, de fumadores impacientes, raspava das plataformas o chewing gum odioso, limpava as latrinas, espalhava desinfectantes, ajudava a pôr graxa nas calhas, polvilhava as vias de um pó branco e misterioso, e todas as vezes que o camarada da lanterna soltava um apito estrídulo – lá vem o comboio! – ele encolhia-se contra a parede negra, onde escorriam águas de infiltração, na estreita passagem de serviço. […] Sempre de olhos no chão, bisonho e calado, como quem nada espera do Alto, e não esperava. A vida dele vinha toda do chão imundo e viscoso. Nem sequer olhava a lívida claridade que resvala dos respiradouros para o negrume interior, onde tremeluzem lâmpadas eléctricas, entre as pilastras inumeráveis daquela floresta subterrânea metalizada: nunca lhos tinham mandado limpar. […] Nem talvez soubesse que existiam os respiradouros. Era estrangeiro, imigrante, como tanta gente, não brincara nem vadiara na voragem empolgante das ruas da grande cidade, e vivia perfeitamente resignado à sua obscuridade. […] Como tinha nascido na Lituânia, ou talvez na Estónia, só falava em monossílabos; e, debaixo da pátina oleosa e negra que o ar do subway nela imprimira com o tempo, a sua face era incolor e a raça indistinta. Antes disso tinha trabalhado em escavações, um «toupeira». Este emprego era muito melhor, embora também fosse subterrâneo. E não tinha que falar o inglês, que mal entendia.
     Ora, à esquina de certa rua, no Uptown, há uma igreja, a de São João Baptista e do Santíssimo Sacramento, a todo o comprimento de cuja fachada barroca e cinzenta os respiradouros do subway formam uma longa plataforma de aço arrendado. Os casamentos são frequentes, ali, por ser chique a paróquia e imponente a igreja. O arroz chove às cabazadas em cima dos noivos, à saída da cerimónia, num grande estrago de alegria. Metade dele some-se logo pelas grelhas dos respiradouros, outra parte fica espalhada nas placas de cimento do passeio. Depois dos casamentos, o sacristão ou porteiro da igreja, de cigarro ao canto da boca, varre o arroz para dentro das grades, por comodidade. […] O que se derramou no pavimento da rua, lá fica: é com os varredores municipais. […]
     Aquela chuva de grãos atravessa as grades, resvala no plano inclinado do respiradouro, e […] ressalta para dentro do subterrâneo, numa estreita passagem de serviço vedada aos passageiros.
     A primeira vez que viu aquele arroz derramado no chão, e sentiu os bagos a estalar-lhe debaixo das botifarras, o limpa-vias não fez caso […]. Mas como ia agora por ali com mais frequência, notou que a coisa se repetia. O arroz limpo e polido brilhava como as pérolas de mil colares desfeitos no escuro da galeria. O homem matutou: donde é que viria tanto arroz? Intrigado, ergueu os olhos pela primeira vez para o Alto, e avistou a vaga luz de masmorra que escorria da parede. […] Era dali, com certeza, que caía o arroz, como as moedas, a poeira, a água da chuva e o resto. O limpa-vias encolheu os ombros sem entender. Desconhecia os ritos e as elegâncias. No casamento dele não tinha havido arroz de qualidade nenhuma, nem cru, nem doce, nem de galinha.
     Até que um dia, depois de olhar em roda, não andasse alguém a espiá-lo, abaixou-se, ajuntou os bagos com a mão, num montículo, e encheu com eles um bolso do macaco. Chegado a casa, a mulher cruzou as mãos de assombro: alvo, carolino, de primeira! Dias depois, sempre sozinho, varreu o arroz para dentro de um cartucho que apanhara abandonado num cesto de lixo da estação, e levou-o para casa. Pobres, aquela fartura de arroz enchia-lhes a barriga, a ele, à patroa e aos seis ou sete filhos. […]

José Rodrigues Miguéis (1995). “Arroz do Céu”.
In: Gente da Terceira Classe. S. l.: Círculo de Leitores, pp. 63-66. 



terça-feira, 18 de março de 2014

José Gomes Ferreira

O Graxa

     […] [A]quele garotão de ontem à tarde encheu-me as medidas. Era um engraxador aloirado, com doze anos talvez, fato-macaco roto nos joelhos, olhos de zinco, pescoço penugento e chancas enormes, que um polícia surpreendera empoleirado num eléctrico, em riscos de cair estatelado no basalto.
     O guarda, cara de boa pessoa, disfarçado de voz de trovão, agarrou-o pelo braço:
     – Seu malandrete! Venha já comigo para a esquadra.
     Molemente, com a caixa do ofício ao ombro, o engraxador desceu do estribo e, com um desafio mudo nos olhos de metal, deixou-se levar sem resistência.
     Logo correu muita gente faminta de dor do próximo. Os passageiros do eléctrico ergueram-se ávidos de Lágrima. As damas extraíram os lenços das malinhas. E um senhor de idade que seguia num táxi mandou parar o carro para sofrer melhor…
     Contra o previsto, porém, o garotão não soltava um queixume nem se espojava de protestos, ante o espanto do guarda, que não escondia a sua incompreensão daquele silêncio fora de todas as regras. Que diabo! Um garoto naquelas circunstâncias devia escabujar, chamar pela mãezinha, avermelhar-se de gritos de aflição, varar o mundo, espolinhar-se na poeira da rua. Assim não valia!
     E para o acordar bem, para o trazer à tona dos hábitos, sacudiu-o outra vez com falsa cólera:
     – Percebeste? Vou meter-te no calabouço, para aprenderes a não andar agarrado aos eléctricos. Percebeste?
     Pois, sim, rala-te. Nem pio. Apenas os olhos de cinza, secos e refilões.
     Em redor, começava a criar-se um ambiente de logro. Os passageiros, perdidas as esperanças de assistir ao espectáculo do Lamento e da Lágrima a correr, desabavam os corpos nos bancos, em decepções de fadiga. E até o pobre polícia, boa pessoa no fundo, com dois pequenos lá em casa, que pretendia apenas pregar um susto ao malandrim, parecia acabrunhado. Os seus olhos imploravam nitidamente: «Chora, malandro!», «Chora para eu ter pena!», embora a sua voz trovejasse:
     – Olha que vais para o calabouço! Percebeste?
     Mas o garotão, filho da teimosia dos pedregulhos, das ervas e das manhãs duras de trabalho, mantinha-se firme no seu silêncio, a olhar, com desprezo distante, para toda aquela matulagem que queria vê-lo chorar, a ele, o «Graxa».
     – Sai da minha frente, meu malandro, se não racho-te! – acabou por exclamar o polícia em último recurso de desespero fingido para se livrar daquela complicação. – Põe-te a cavar. Ala!
     E outra vez feliz por não prender ninguém, por persistir tudo na monotonia uniforme das mesmas ruas, na repetição sem surpresas do mesmo todos-os-dias, desfez o ajuntamento com dois trovões:
     – Vamos! Circulem! Circulem!
     Circulei.
     Mas, assim como quem não quer a coisa, segui o engraxador de perto durante algum tempo.
     A vitória dera-lhe maior lentidão nos gestos e no andar. Torcia agora a boca, mais refilona sob os olhos escarninhos, e escarafunchava nos bolsos, com uma das mãos, à procura de não sei quê.
     Acabou por encontrar. Era uma beata, que acendeu a custo, a puxar fumaças trabalhosas, crepitantes de saliva.
     Depois, sempre com o «piano» às costas, cuspiu com desdém longo e, do fundo do orgulho dos seus doze anos de calos, de miséria, de trabalho, de chulipas, de trambolhões, de abandono, de pão duro, de restos de rancho, de cama sem lençóis, envolveu o mundo num insulto roufenho:
     – Palermas!
     […]

José Gomes Ferreira  (2004). “O «Graxa»”. In O Mundo dos Outros . Rio de Mouro: Círculo de Leitores: pp. 133-134.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Lídia Jorge

O Dia dos Prodígios

Um personagem levantou-se e disse. Isto é uma história. E eu disse. Sim. É uma história. Por isso podem ficar tranquilos nos seus postos. A todos atribuirei os eventos previstos, sem que nada sobrevenha de definitivamente grave. Outro ainda disse. E falamos todos ao mesmo tempo. E eu disse. Seria bom para que ficasse bem claro o desentendimento. Mas será mais eloquente. Para os que crêem nas palavras. Que se entenda o que cada um diz. Entrem devagar. Enquanto um pensa, fala e se move, aguardem os outros a sua vez. O breve tempo de uma demonstração. 



Lídia Jorge (1995). O Dia dos Prodígios (7.ª edição). Lisboa: Dom Quixote, p. 9.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Eugénio de Andrade

ELEGIA

Às vezes era bom que tu viesses.
Falavas de tudo com modos naturais:
em ti havia
a harmonia dos frutos
e dos animais. 

Maio trouxe cravos como outrora, 
cravos morenos, como tu dizias, 
mas cada hora
passa e não se demora
nas tristezas das nossas alegrias.

Ainda sabemos cantar, 
só a nossa voz é que mudou: 
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.

Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude,
tu quebraste o ritmo e o ardor,
ao partires um a um
os ramos todos da tua juventude. 

Não estamos sós:
setembro traz ainda
um fruto em cada mão. 
Mas os homens, as aves e os ventos
já não bebem em ti a direcção.


Eugénio de Andrade (1987). «Elegia». In: Poesia e Prosa. Lisboa: Círculo de Leitores, pp. 36-37.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Alexandre O'Neill

O PAÍS RELATIVO

País por conhecer, por escrever, por ler...

                        
País purista a prosear bonito,
a versejar tão chique e tão pudico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira, comigo.

                         
País que me pede livros andejantes
com o dedo, hirto, a correr as estantes.

                         
País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano.

                         
País onde qualquer palerma diz,
a afastar do busílis o nariz:
-Não, não é para mim este país!
mas quem é que bàquestica sem lavar
o sovaco que lhe dá o ar?

                         
Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.

                         
País do cibinho mastigado
devagarinho.

                         
País amador do rapapé,
do meter butes e do parlapié,
que se espaneja, cobertas as miúdas,
e as desleixa quando já ventrudas.

                         
O incrível país da minha tia,
trémulo de bondade e de aletria.

                         
Moroso país da surda cólera,
de repente que se quer feliz.

                         
Já sabemos, país, que és um homenzinho...

                         
País tunante que diz que passa a vida
a meter entre parêntesis a cedilha.

                         
A damisela passeia
no país da alcateia,
tão exterior a si mesma
que não é senão a fome
com que este país a come.

                         
País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?

                         
País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,
inaugurando esguichos no engonço
do gesto e do chavão.

E ainda há quem os ouça, quem os leia,
lhes agradeça a fontanária ideia!

                         
Corre boleada, pelo azul,
a frota de nuvens do país.

                         
País desconfiado a reolhar para cima
dum ombro que, com razão, duvida.

                         
Este país que viaja a meu lado,
vai transido mas transistorizado.

                         
Nhurro país que nunca se desdiz.

                         
Cedilhado o cê, país, não te revejas
na cedilha, que a palavra urge.

                         
Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,
a nós e à tirania,
sem perder tempo nem caligrafia.

                         
Nesta mosquitomaquia
que é a vida,
ó país,
que parece comprida!

                         
A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
já perde a paciência à nossa cabeceira.

                         
País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,
que entre dois sudários não contém senão
a triste maçã do coração.

                         
Que Santa Sulipanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!

                         
País das troncas e delongas ao telefone
com mil cavilhas para cada nome.

                         
De ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...

                         
Embezerra, país, que bem mereces,
prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.

                         
Desaninhada a perdiz,
não a discutas, país!
Espirra-lhe a morte pra cima
com os dois canos do nariz!

                         
Um país maluco de andorinhas
tesourando as nossas cabecinhas
de enfermiços meninos, roda-viva
em que entrássemos de corpo e alegria!

                         
Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro
e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.

Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
já o passo a meu filho, cansado de o olhar...

                                               
No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,
a conversa pancrácia e o jeito alvar.


Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvalaste para mim.
Mas também me ofereceste a cordial botelha,
empinada que foi, tal e qual clarim!

Alexandre O'Neill (1986). «O País Relativo», in: tomai lá do O'Neill! S.l.: Círculo de Leitores, pp. 153-156.