quinta-feira, 7 de março de 2013

Ferreira de Castro
A Selva
[excerto]
[…]
O «varador» era estreita senda que não daria passagem a um automóvel, pequeno que fosse; e cortavam-no, aqui e ali, grossas árvores que tinham caído e apodreciam sem que ninguém as removesse. Dum lado e outro, a selva. Até esse instante Alberto vira apenas as suas linhas marginais; surgia, agora, o coração.
Surgia com um aglomerado exuberante, arbitrário e louco, de troncos e hastes, ramaria pegada e multiforme, por onde serpeava, em curvas imprevistas, em balanços largos, em anéis repetidos e fatais, todo um mundo de lianas e parasitas verdes, que faziam de alguns trechos uma rede intransponível. Não havia caule que subisse limpo de tentáculos a expor a crista ao sol; a luz descia muito dificilmente e vinha, esfarrapando-se entre folhas, galhos e palmas, morrer na densa multidão de arbustos, cujo verde intenso e fresco nunca esmorecia com os ardores do Estio. Primeiro a folhagem seca dos gigantes, que cobria o chão, putrefazendo-se em irmandade com troncos mortos e esfarelados, dos quais já brotavam, vitoriosas para a vida, folhitas petulantes como orelhas de coelho. Alastravam, depois, as largas palmas de tajás e de outra plantaria, de tudo quanto vinha nascendo e ocultava a terra onde as árvores sepultavam as raízes. Crescia a mata até à altura de dois homens, posto um sobre o outro, e só então os olhos podiam encontrar algum espaço em branco, riscado, ainda assim, polos coleios dos cipós que iam de tronco a tronco, dando ponte a capijubas e demais macacaria pequena, que não quisesse saltar. De lá para cima abriam-se as umbelas seculares e constituíam série interminável os seus portentosos cabos. E era aí que a luz dava um ar da sua graça, branqueando e tornando luzidio o pescoço de algumas árvores mais altas e restituindo, pela transparência, às asas de milhares de borboletas, as suas verdadeiras cores de arco-íris fantástico.
De longe a longe, uma palmeira muito esguia e clara subia, em arranco de foguete, para olhar a selva por cima do ondeado em que terminava todo o arvoredo. E eram, então, quatro palmas solitárias lá no alto, como se quisessem fugir dos homens – dos homens que, apesar de tudo, lhes iam roubar o cacho saboroso, de onde extraíam o açaí.
A princípio, ainda os olhos fixavam o revestimento deste e daquele tronco e de outro, e outro, e outro, mas depois abandonavam-se ao conjunto, porque não havia memória nem pupila que pudesse recolher tão grande variedade. Só de frutos que não se comiam e se corrompiam na terra, porque nunca ninguém se arriscara a saber se davam apenas volúpia ou se envenenavam também, havia mais espécies do que todas as que se cultivavam em pomares europeus. Somente a colectividade imperava ali: o indivíduo vegetal despersonalizava-se e era amesquinhado pelos vizinhos, tantos, tantos, que apesar de Firmino ter já nomeado centenas, restavam muitos milhares ainda no anonimato. De quando em quando, golfando por súbita abertura, o sol iluminava um inverosímil claustro.
E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfónico, feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam ao murmúrio suavíssimo da folhagem, tão suave que parecia estar a selva em êxtase.
Às vezes, era certo, uma imprevista e pânica restolhada de folhas e de asas levava Alberto a parar, agarrando-se instintivamente ao braço do companheiro.
– É uma inambu – disse Firmino, sorrindo daquele temor.
Mais adiante, ruidoso lagarto, correndo subitamente sobre a folhagem morta, de novo o galvanizava.
Mas o silêncio volvia. E com ele, uma longa, uma indecifrável expectativa. Dir-se-ia que a selva, como uma fera, aguardava há muitos milhares de anos a chegada de maravilhosa e incognoscível presa.
[…]
Castro, Ferreira de (2000). A Selva (39ª ed.).
Lisboa: Guimarães Editores. pp. 78-80.


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A Selva, o filme de Leonel Vieira (2002) – trailer. 

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