quinta-feira, 21 de março de 2013

Lídia Jorge
O Dia dos Prodígios
[excerto]

     […]
     Macário como se quisesse aliviar o coração, levantou uma perna e iniciou as cantigas. Temos a tarde toda, oh gente. Isto pode não ter fim. Os vizinhos sentiram que a sombra concreta podia começar a chegar à rua, apesar da lentidão, e por isso se sentaram em fila no poial de pedra. Macário de perna levantada entre os portais, apoiando o pé sobre o tampo duma cadeira. Palhetava fino e vibrado, requebrando a melodia como de soluços. Essa e ainda essa, e ainda outra parecida à primeira. Tiago pensava, vendo a palheta vibrar as cordas que o instrumento podia quebrar-se. Seguindo ele todos os movimentos da mão. E experimentou uma inveja saudosa de um outro mundo, onde ele próprio teria sido capaz de desferir a música sobre uma caixa de som. E esses pensamentos eram tristes. Vinham no fio e na ponta daquele requebro, vibrante e repicado, sem um som de canto. O bandolim do seu vizinho fazia-lhe representar mulheres que nunca se queixavam, nem perdiam os dentes, e que no entanto amavam muito e bem. Mulheres que morriam de pé e não se deixavam ver enterrar. Só para não deixarem nos amantes a lembrança da desfiguração. Por isso teve de dizer com licença. Macário parou, e Tiago disse. Um momento, homem, um momento. Muda de estilo, que essa faz-me humedecer a vista. Ou será do calor que faz? Então Macário concentrou-se sobre um último riso, fechou os olhos, iluminou os dentes e toda a cavidade da boca e começou também a cantar. Com o balanço de todo o corpo. Que por causa de uma cobrinha. Esmagada no terreiral. Toda a gente sua vizinha. Ai toda a gente. Toda a gente sua vizinha. Se afogara em cagaçal. Nesse momento chegavam as crianças atraídas pela música e pelo canto, em passo solene e chapéu fora, e o cantor repetiu a quadra de perna no ar. No final da copla, fechou completamente os olhos e juntou os dois pés. Levantou o bandolim no ar e disse. Tudo. Tudo o que canto e toco me sai directamente desta. Apontando a cabeça com o dedo.
– Compões bem, meu filho. Mas és perdido nesta terra. Disse Manuel Gertrudes.
São todas minhas e faço-as no momento em que as canto. Porque os ouvintes eram muitos e se aproximavam devagar para não interromperem, Macário acrescentou mais um palhetado vibrante de som. Que essa magana do pasto. Da espessura dum tostão. Morava em todas as casas. À espera de ocasião. Ai à espera de ocasião. E todos disseram. Ai à espera de ocasião. Com entusiasmo de compostura. Ai à espera de ocasião. Macário fazia agradecimento, deixando a vizinhança entoar sozinha. E virava o alto da cabeça nos joelhos. Os cabelos soltos como erva escura por segar.
[…]
Jorge, Lídia (1995). O Dia dos Prodígios (7ª ed.).
Lisboa: Publicações Dom Quixote. pp. 178-179.

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