segunda-feira, 18 de março de 2013

Literatura e Fado
Dedicamos esta semana a textos relacionados com o Fado.
David Mourão-Ferreira
Um Amor Feliz
[excerto]

     […]
     No retiro de fados do Bairro Alto onde acabámos por ancorar já eram escassas, entre os clientes, essas broncas cataduras de frustrados aspirantes a Marialvas que são hoje directores-gerais, passadores de droga, deputados da nação ou membros da segurança de qualquer partido; já as fadistas, desengraçadinhas e meio sonolentas, pouco ou nada se preocupavam em retocar a maquilhagem, desengelhar os collants, alisar as franjas dos xailes; já os violistas e o guitarrista pacatamente se conluiavam para em surdina ensaiarem novas variações destinadas a um espectáculo no Coliseu, dali a duas semanas, que talvez até fosse transmitido pela TV; já as empregadas e os empregados, elas vestidas de varinas, eles de campinos, só com dificuldade acediam a desencostar-se das ombreiras das portas, como se as ombreiras, sem eles, ficassem lamentavelmente privados de preciosos elementos decorativos. Embora a casa estivesse às moscas, esperámos uns bons vinte minutos até que nos trouxessem um canjirão de vinho tinto.
     […]
     Os violistas e o guitarrista acabavam felizmente de atacar com brio umas frenéticas variações que deveriam constituir o prelúdio do último round dos fadinhos: decerto em honra do Saltimbanco e da companheira, que pareciam muito íntimos do pessoal artístico da casa. Pela nossa parte, seria indecoroso continuarmos ali à conversa. Silêncio, pois, que se ia cantar o fado.
     No fim do round – de resultado nulo – eis que da mesa do Saltimbanco se levanta a companheira do Saltimbanco para vir sussurrar umas palavrinhas aos tocadores, para depois ir pedir o xaile à fadista que tinha acabado de actuar. Então, dirigindo-se especialmente à nossa mesa, informou a reduzida assembleia de que ia tentar interpretar um fado que pertencia ao reportório da grande Amália (e que a grande Amália, se viesse a sabê-lo, lho desculpasse!), cuja letra era da autoria de uma pessoa ali presente; e nomeou e apontou o seu amigo, a quem ainda tive tempo de murmurar:
     «Nem precisas de te fazer gestor… Estás cá com uma destas sortes!»
     Então, num doméstico fio de voz, que deve ser aprazível de ouvir quando ela em casa desligue o aspirador ou até o secador do cabelo, os primeiros versos ergueram-se, mais lânguidos que vibrantes, mais moles que lânguidos:

     Fui à praia, e vi nos limos
     a nossa vida enredada…
     Ó meu amor, se fugirmos,
     ninguém saberá de nada!

     Com o meu espírito prosaico, fiquei a matutar naquilo; e, no fim do fado, depois de o seu amigo ter ido agradecer à amadora intérprete, com beija-mão e tudo (mas ela pespegou-lhe dois chochos nas faces) e de se ter desentranhado em sorrisos de aplauso para o embevecido Saltimbanco, não me contive em observar:
     «Com que então se fugirem ninguém saberá de nada? Que raio de liberdade poética! Se fugirem é que fica mesmo toda a gente a saber de tudo…»
     […]

Mourão-Ferreira, David (1987). Um Amor Feliz
(3ªed.). Lisboa: Editorial Presença. pp. 267-271.


Páginas Paralelas:

Descubra a relação de David Mourão-Ferreira com o Fado no Portal do Fado e no site Museu do Fado.
Notícia sobre a criação do prémio David Mourão-Ferreira, oferecido pelo Centro Cultural de Belém e pelo Museu do Fado, que será atribuído, a partir de 2014, à melhor tese de mestrado sobre Fado e Literatura, disponível na Gazeta dos Artistas
Amália canta “Barco Negro” de David Mourão-Ferreira em Cannes (1962) 


Barco Negro
David Mourão-Ferreira

De manhã temendo que me achasses feia,
acordei tremendo deitada na areia,
mas logo os teus olhos disseram que não
e o sol penetrou no meu coração.

Vi depois, numa rocha, uma cruz,
e o teu barco negro dançava na luz;
vi teu braço acenando, entre as velas já soltas.
Dizem as velhas da praia que não voltas...
São loucas! São loucas!

Eu sei, meu amor,
que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor
me diz que estás sempre comigo.

No vento que lança
areia nos vidros,
na água que canta,
no fogo mortiço,
no calor do leito,
nos bancos vazios,
dentro do meu peito
estás sempre comigo.

Disponível em http://www.tabacaria.com.pt/poesia/textos/Barco_Negro.htm (onde pode ver o poema anotado)

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