Camilo Castelo Branco
Eusébio Macário
[excerto]
[…]
Todos a pedirem-lhe que cantasse, que tocasse. O Fístula disse que só tocava banza e guitarra. D. Felícia lembrou que na cocheira havia quem tocasse guitarra: era o trintanário, um mulato que tinha alegrado de cantares torpes a cocheira do Lopes alquilador. Que viesse a guitarra.
O José Macário, feito um grande silêncio, afinava, premia as cordas, correndo-as de alto a baixo, distendendo-as, tirava acordes, transportes segundo a arte, subia diatonicamente, feriu sustenidos, pelas regras da oitava; depois tocou uma contradança, o hino de Pio IX.
– O fado, o corrido! – pediu D. Pascoela.
– Sim, um fadinho! – muitas vozes a pedirem fadinhos.
– Mas que seja decente – observou Eusébio Macário circunspectamente.
– Isso nem é preciso dizê-lo – emendou Trigueiros.
– O José sabe muitos decentes; – disse a baronesa – olha, diz aquele:
Passarinhos que cantais
Nesse raminho de flores,
Cantai vós, chorarei eu,
Que assim faz quem tem amores.
E o Fístula:
– Vá lá.
E sentou-se ao centro, ao pé da jardineira, estendeu uma perna, cruzou a outra, numa atitude gingada, atirou as melenas frisadas para trás das orelhas, arregaçou os punhos, pôs o charuto no mármore, inclinou o tronco sobre o braço da guitarra, e dedilhou em harpejos gementes o prelúdio do fado de Coimbra. Começou-se então a sentir um tremelicar de cadeiras e um vibrátil sapatear de tacões de sapatinhos ao compasso das notas plangentes. Eram a baronesa do Rabaçal e D. Pascoela Trigueiros que se remexiam involuntariamente, obedecendo a uma fatalidade nervosa de saracote, que lhes punha nas nalgas e na cintura uns derrengues lascivos de uma brejeirice encantadora. Houve gargalhada. A Pascoela baixou o rosto para arranjar um pudor à sombra do leque; a baronesa confessou ingenuamente que não podia resistir àquilo.
Depois o Fístula cantou a glosa da quadra, que a irmã lhe dissera, com umas tonalidades roucas, de sentimentalidade canalha, com intermissão de uns oras e de uns ais mui langorosos, o zing fadista de cervejarias e botequins de lacaios. Havia versos que ele cantava com morbidezas gaiatas, pondo os olhos nos florões coloridos do estuque. Dirigia-se ao passarinho:
Vós sois o mimo do Fado,
Eu da Fortuna o desprezo;
Vós em liberdade, eu preso,
Vós feliz, eu desgraçado.
[…]
Branco, Camilo Castelo (1991). Eusébio Macário. Porto: Porto Editora. pp. 97-98.
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