quarta-feira, 20 de março de 2013

Camilo Castelo Branco
Eusébio Macário
[excerto]

     […]
     Todos a pedirem-lhe que cantasse, que tocasse. O Fístula disse que só tocava banza e guitarra. D. Felícia lembrou que na cocheira havia quem tocasse guitarra: era o trintanário, um mulato que tinha alegrado de cantares torpes a cocheira do Lopes alquilador. Que viesse a guitarra.
     O José Macário, feito um grande silêncio, afinava, premia as cordas, correndo-as de alto a baixo, distendendo-as, tirava acordes, transportes segundo a arte, subia diatonicamente, feriu sustenidos, pelas regras da oitava; depois tocou uma contradança, o hino de Pio IX.
     – O fado, o corrido! – pediu D. Pascoela.
     – Sim, um fadinho! – muitas vozes a pedirem fadinhos.
     – Mas que seja decente – observou Eusébio Macário circunspectamente.
     – Isso nem é preciso dizê-lo – emendou Trigueiros.
     – O José sabe muitos decentes; – disse a baronesa – olha, diz aquele:

                                                               Passarinhos que cantais
                                                               Nesse raminho de flores,
                                                               Cantai vós, chorarei eu,
                                                               Que assim faz quem tem amores.

     E o Fístula:
     – Vá lá.
     E sentou-se ao centro, ao pé da jardineira, estendeu uma perna, cruzou a outra, numa atitude gingada, atirou as melenas frisadas para trás das orelhas, arregaçou os punhos, pôs o charuto no mármore, inclinou o tronco sobre o braço da guitarra, e dedilhou em harpejos gementes o prelúdio do fado de Coimbra. Começou-se então a sentir um tremelicar de cadeiras e um vibrátil sapatear de tacões de sapatinhos ao compasso das notas plangentes. Eram a baronesa do Rabaçal e D. Pascoela Trigueiros que se remexiam involuntariamente, obedecendo a uma fatalidade nervosa de saracote, que lhes punha nas nalgas e na cintura uns derrengues lascivos de uma brejeirice encantadora. Houve gargalhada. A Pascoela baixou o rosto para arranjar um pudor à sombra do leque; a baronesa confessou ingenuamente que não podia resistir àquilo.
     Depois o Fístula cantou a glosa da quadra, que a irmã lhe dissera, com umas tonalidades roucas, de sentimentalidade canalha, com intermissão de uns oras e de uns ais mui langorosos, o zing fadista de cervejarias e botequins de lacaios. Havia versos que ele cantava com morbidezas gaiatas, pondo os olhos nos florões coloridos do estuque. Dirigia-se ao passarinho:

                                                               Vós sois o mimo do Fado,
                                                               Eu da Fortuna o desprezo;
                                                               Vós em liberdade, eu preso,
                                                               Vós feliz, eu desgraçado.
                                                               […]


Branco, Camilo Castelo (1991). Eusébio Macário. Porto: Porto Editora. pp. 97-98.

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