sexta-feira, 1 de março de 2013

José Gomes Ferreira

Em março e abril divulgaremos textos de autores portugueses a que temos dedicado menor atenção neste blog.

José Gomes Ferreira
Aventuras de João Sem Medo
O homem sem cabeça
[excerto]

Era uma vez um rapaz chamado João que vivia em Chora-Que-Logo-Bebes, exígua aldeia aninhada perto do Muro construído em redor da Floresta Branca onde os homens, perdidos dos enigmas da infância, haviam instalado uma espécie de Parque de Reserva de Entes Fantásticos.
     Apesar de ficar a pouca distância da povoação, ninguém se atrevia a devassar a floresta. Não só por se encontrar protegida pela altura descomunal do Muro, mas principalmente porque os choraquelogobebenses – infelizes chorincas que se lastimavam de manhã até à noite – mal tinham força para arrastar o bolor negro das sombras, quanto mais para se aventurarem a combater bichas de sete bocas, gigantes de cinco braços ou dragões de duas goelas. Preferiam choramingar, os maricas!, agachados em casebres sombrios, enquanto lá por fora chovia com persistência implacável (como se as nuvens estivessem forradas de olhos) e dos milhares e milhares de chorões – as árvores predilectas dessa gente – pingavam folhas tristes. Tudo isto incitava os habitantes da aldeia a andarem de monco caído, sempre constipados por causa da humidade, e a ouvirem com delícia canções de cemitério ganidas por cantores trajados de luto, ao som de instrumentos plangentes e monótonos.
     O único que, talvez por capricho de contradizer o ambiente e instinto de refilar, resistia a esta choradeira pegada, era o nosso João que, em virtude duma contínua ostentação de bravata alegre e teimosia na luta, todos conheciam por João Sem Medo.
     Ora um dia, farto de tanta choraminguice e de tanta miséria que gelava as casas e cobria os homens de verdete, disse à mãe que, conforme a tradição local, lacrimejava no seu canto de viúva:
     – Mãe: não aturo mais isto. Vou saltar o Muro.
     A pobre desatou logo aos berros de súplica que abalaram o Céu e a Terra:
     – Ah! não vás, não vás, meu filho! Pois não sabes que essa Floresta Maldita está povoada de Canibais Mágicos que se alimentam de sangue de homens? Sim, meu filho, de sangue humano bebido por caveiras. Não vás! Não vás!
     E durante horas não cessou de barregar, histérica:
     – Ai que não torno a ver o meu rico filhinho!
     Mas as implorações da mãe não impediram que, na manhã seguinte, João Sem Medo se esgueirasse de Chora-Que-Logo-Bebes e se dirigisse à socapa para o tal Muro que cercava a floresta e onde alguém escrevera este aviso:
É PROIBIDA A ENTRADA
A QUEM NÃO ANDAR
ESPANTADO DE EXISTIR


Ferreira, José Gomes (1978). Aventuras de João Sem Medo:
Panfleto Mágico em Forma de Romance (9ª ed.). Lisboa: Moraes 
Editores. pp. 9-10. (Publicado pela primeira vez em 1963).*

* Nota: Foi escrito em 26 folhetins, para a gazeta juvenil O Senhor Doutor, em 1933, assinados sob o pseudónimo de Avô do Cachimbo.



Páginas Paralelas:
Todo o primeiro capítulo, “O homem sem cabeça”, disponível aqui

Animação do Capítulo VII. “A Cidade da Confusão”, de Margarida Fernandes e Tiago Kawata (2011). Lisboa: UFSC-IADE

Documentário “José Gomes Ferreira – Um Homem do Tamanho do Século” (2000), produzido pela Videoteca Municipal de Lisboa no centenário do nascimento do autor, com o apoio da RTP e o patrocínio do Instituto Camões – entrevista (Arquivo RTP); leitura de textos pelo actor João Mota (Comuna – Teatro de Pesquisa); “Valsa das Folhas Secas Caindo”, composta por J. G. Ferreira e interpretada por Gabriela Canavilhas

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