Auto da Barca do Inferno
[excerto]
[…]
Chega um Onzeneiro, e diz:
Onzeneiro Oh da barca tão valente!
Pera onde caminhais?
Diabo Oh que ma ora venhais,
onzeneiro meu parente!
Como tardaste vós tanto?
Onzeneiro Mais quisera eu lá tardar;
na safra do apanhar
me deu Saturno quebranto.
Diabo Ora muito m’eu espanto
não vos livrar o dinheiro.
Onzeneiro Nem tam soes pera o barqueiro,
não me deixaram nem tanto.
Diabo Ora entrai, entrai aqui.
Onzeneiro Não hei eu i de embarcar.
Diabo Oh que gentil recear,
e que cousas pera mi!
Onzeneiro Ind’agora faleci,
deixai-me buscar batel.
Diabo Pesar de Jam Pimentel!
Porque não irás aqui?
Onzeneiro E pera onde é a viagem?
Diabo Pera onde tu hás d’ir,
estamos pera partir:
não cures de mais linguagem.
Onzeneiro Mas pera onde é a passagem?
Diabo Pera a infernal comarca.
Onzeneiro Dixe, não m’embarco eu nessa barca;
est'outra tem a vantagem.
(Vai-se à barca do Anjo)
Ou da barca, ou lá, ou!
haveis logo de partir?
Anjo E onde queres tu ir?
Onzeneiro Eu pera o Paraíso vou.
Anjo Pois cant’e eu bem fora estou
de te levar pera lá:
ess’outra te levará;
vai pera quem t’enganou.
Onzeneiro Porque?
Anjo Porqu’esse bolsão
tomara todo o navio.
Onzeneiro Juro a Deus que vai vazio.
Anjo Não já no teu coração.
Onzeneiro Lá me ficam de rondão
vinte e seis milhões n’ũa arca.
Diabo Pois que onzena tanto abarca,
não lhe deis embarcação.
(Torna ao Diabo)
Ou lá, ou demo barqueiro,
sabeis vós no que me fundo?
Quero lá tornar ao mundo,
e trazer o meu dinheiro,
qu’aquel’outro marinheiro
porque me vê vir sem nada,
dá-me tanta borregada,
como arrais lá do Barreiro.
Diabo Entra, entra, e remarás;
não percamos mais maré.
Onzeneiro Todavia…
Diabo Por força é:
que te pês, cá entrarás;
irás servir Satanás,
pois que sempre t’ajudou.
Onzeneiro Oh triste! quem me cegou!
Diabo Cal’-te, que cá chorarás.
(Entretanto no batel, diz ao Fidalgo)
Onzeneiro Santa Joana de Valdez!
Cá é Vossa Senhoria?
Fidalgo Dá ó demo a cortesia.
Diabo Ouvis? falai vós cortês.
Vós, fidalgo, cuidareis
que estais em vossa pousada?
dar-vos-ei tanta pancada
c’um remo, que arrenegueis.
[…]
Vicente, Gil (s.d.). Auto da Barca do Inferno.
In Teatro. Lisboa: Círculo de Leitores. pp. 36-38.
Páginas Paralelas:
“Auto da Barca do Inferno” por Cultural Kids, com encenação de António Feio (2010) – vídeo [excerto]
Página Web do Teatro Académico de Gil Vicente, da Universidade de Coimbra
Sem comentários:
Enviar um comentário