Fernando Namora
História de uma Pneumonia
Fui admitido como interno do hospital da vila. Não havia, aliás, grandes oposições ao lugar, visto que o orçamento não incluía remuneração aos médicos. […]
O médico é um sujeito milagroso e optimista, que vive de honrarias, que não tem estômago nem família, aceitando ou implorando, de chapéu na mão, um canto qualquer onde trabalhe de graça. É o único profissional, neste mundo bem atento ao deve e haver, que se basta com doentes, horas afanosas de lida, uma euforizadora aparência de auréolas e proveito.
Os outros médicos do hospital receberam-me com um abraço de boas-vindas: eu não ia para ali como competidor; apenas os libertaria de algumas estafas sem recompensa. Por meu lado, estava convencido, como todos os novatos, de que essa actividade me daria lições de experiência e de contacto rendoso com os doentes da região. […]
Certo dia, chegou ali um homem rude, dos seus cinquenta anos, com as rugas da nuca e da face preenchidas por décadas de sujidade. Enquanto o observava, distraía-me a seguir a geografia dessas linhas de sarro estratificado. Dei-lhe uma palmada nas costas, para o dispor bem, e disse:
- Pode ficar internado, sim senhor. Vai tomar um banho, despir esse fato e entra já hoje para a enfermaria.
- Banho, Sr. Doutor?
- Banho, pois… É o costume.
O homem levou as mãos às costas, coçou-as, indeciso e suspeitoso.
- Banho… – repetiu ele, meditabundo – Banho, Sr. Doutor, é que não consinto. Não vejo de que me sirva para a minha doença.
- Pois isso nada tem a ver com a sua doença, de acordo. Mas é do regulamento, e um regulamento é para se cumprir. O banho e a mudança de roupa. Temos cá em baixo uma casa para guardar os fatos dos doentes. Pode estar descansado que o seu fica em segurança.
O homem deu um passo para a saída e pegou no chapéu. Interpelei-o ainda:
- Então o senhor não toma banho em sua casa?
- Tomei, sim senhor, antes das sortes e antes do meu casamento. A gente não vai chapinhar na água toda a vez que se lembre. Está um homem sujeito a apanhar um catarral ou um resfriamento.
- Qual resfriamento! Deixe-se disso e espere aí pelo criado.
Ele, embora reticente, acabou por conceder.
Dois dias depois coube-me a vez de prestar serviço na enfermaria dos homens. Numa das camas, o doente tinha a roupa arrepiada para a cabeça, como se tivesse frio. Peguei no dossier e perguntei ao enfermeiro:
- Quem é este homem?
As mãos do doente afastaram os lençóis com brusquidão. E, de olhos injectados, vermelhos de febre e rancor, disse numa voz rouquejada, mal se percebendo as palavras:
- Sou eu, Sr. Doutor! Tenho um catarral e é por sua culpa. Eu bem lhe disse que não se brinca com a água.
O homem teve realmente uma pneumonia.
Namora, Fernando (1975). Retalhos da Vida de um Médico.
Lisboa: Círculo de Leitores. pp. 119-121.
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