quarta-feira, 13 de março de 2013

Aquilino Ribeiro

O Malhadinhas
[excerto]


     […]
     Eu praguejava como é próprio de gente pouco paciente e nada habituada a rezar:
     – Raios partam a vida, não me fazer minha mãe fidalgo! Se mil diabos me levassem maila cadela da sorte!...
     – Companheiro dos meus pecados – disse-me então Fr. Joaquim das Sete Dores, de riba da azémola, toque, toque, atrás de mim, tão enfarinhado que só a coca do capuz guardava um arzinho de negro – não blasfemes! Olha que Deus está a ouvir-nos e, se quiser, pode muito bem sepultar-nos debaixo da neve como sepultou os esgipcianos no mar das Arábias. Querias ser fidalgo, ham?! Não querias mais nada…? Tu não sabes o que queres nem sabes o que dizes. Põe lá na tua que as vidas não são piores nem melhores, elha por elha. São vida e basta!
     – Em boa hora sai Vossa Paternidade com o sermonário – respondi eu. – Então a condição dos letrados, de cadeira, a cardar os desavindos; a dos padres – e perdoe Vossa Paternidade se lhe estou em casa – a comer os dízimos e, lá de quando em quando, a louvar no Breviário ao criador dos melros, podem comparar-se a esta safadeza de ofício, raçoar de seco, dormir quando Deus quer, às vezes torricado do sol, outras molhando pingando, como desta feita, que até já levo uma lagoa no umbigo?! Outra porta, que aqui mora um surdo!
     – António – tornava ele, tangendo rijo a bestiaga para aparceirar com o machinho, que era andeiro – o teu entendimento anda mal ensinado. O bicho homem, quem quer que seja e o que quer que faça, tem sempre consigo a mesma peçonha. E esta peçonha sabes o que é? É o nunca estar contente com a sua sorte. Quanto mais tem mais apetece, deseja e torna a desejar para logo ou amanhã aborrecer. Como não há-de cansar-se da vida nesta alcatruzada de aborrecer e desejar.
     – Assim será, meu irmão. Agora cá eu, franqueza, franquezinha, antes queria ser o fidalgo da quinta da Ucha, boa brasa aos pés, bons bifes à manja, boas fêmeas para o gozo, que o pilorda que aqui vai por baixo duma nevasca, Anjo Bento, que até se me afigura que deu foeira no céu.
     […]

Ribeiro, Aquilino (1989). O Malhadinhas. Lisboa: Bertrand Editora.
pp. 133-134. (Publicado pela primeira vez em 1958).


Páginas Paralelas:
Comemorações do cinquentenário da morte de AquilinoRibeiro

Biografia disponível no site da DGLB
Revista de Homenagem ao autor: Colóquio Letras, 85 (Maio 1985)

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