quinta-feira, 14 de março de 2013

José Cardoso Pires
Amanhã, Se Deus Quiser
[excerto]

     Sábado à noite a minha irmã não ia às aulas do Instituto.
     Embora o médico a tivesse avisado de que nunca, mas nunca, deveria trabalhar ao serão, ela lá estava toda dobrada sobre a máquina de costura, chorando cada vez mais dos olhos. E cada vez mais, também, a vista lhe ia enfraquecendo pela noite fora até que, às tantas, já não era apenas a agulha que devorava metros e metros de pano, mas toda ela, acompanhando os pontos com as lágrimas que lhe deslizavam do rosto.
     «Se algum dia tivesse de trabalhar em obra fina, estava perdida», ouvia-a dizer em certas ocasiões. Referia-se evidentemente ao perigo de manchar um tecido precioso com as lágrimas, e suspirava limpando-as às costas da mão.
     Esfregava muito a cara, tinha-a afogueada. Passava a semana a batalhar com quilómetros de fazenda que lhe mandavam, cortada, do Casão Militar e nos serões de sábado e de domingo quase cegava de esforço. A pouco e pouco ia descaindo a cabeça, a princípio debruçada e por fim toda estendida sobre a máquina de costura, e pedalando sempre pela noite além. Naquela posição, tão atenta e silenciosa, a minha irmã parecia escutar uma longa e amarga conversa que a agulha lhe ia ditando ao ouvido enquanto o tecido – áspero cotim de militares – passava por entre elas as duas, mulher e máquina, regado de lágrimas a todo o comprimento.
     Em casa só tínhamos lâmpadas de quinze velas e, mesmo assim, nos últimos dias do mês, éramos obrigados a usar o candeeiro a petróleo para evitar as multas do racionamento. De modo que, enquanto podíamos gastar electricidade, havia um cartão amarrado à volta da lâmpada para dirigir a luz sobre a minha irmã. O resto da sala ficava então nas trevas. Distinguiam-se vultos de móveis, paredes, vidraças cruzadas e tiras de papel (conforme obrigavam os legionários da Defesa Civil, copiando a Europa que andava em guerra) e, a um canto, boiando numa ilha de luz, a minha irmã à máquina.
     «Então?», perguntou-me a mãe assim que entrei. Estava também a costurar, sentada numa cadeira baixinha, e partia uma linha com os dentes. Ficou com ela pendurada na boca, a fitar-me.
     «O jantar, mãe.»
     Eu a dizer isto, e o pedal da máquina de costura a suspender-se como que por milagre. Sentei-me à mesa, adivinhando o olhar da minha irmã pousado sobre mim, percebendo o silêncio da máquina, de que dependia esse olhar, e percebendo igualmente que a mãe continuava suspensa, com a linha partida pendurada nos lábios.
     «A comida», tornei eu a pedir, debruçando-me ainda mais sobre o oleado que cobria a mesa.
     Então a mãe abandonou o monte de roupa que tinha no regaço e endireitou-se com um suspiro fundo que lhe fez estremecer o peito. Em seguida espetou a agulha na gola do vestido.
     «Já calculava», disse. «Paciência, que havemos nós de fazer?»
     A passos cansados, veio colocar-se diante de mim. De pé, apoiada à mesa, as mãos tremiam-lhe muito, escuras e gretadas por golpes de facas de cozinha e pela lixívia.
     «Nem ao menos te deram uma desculpa?»
     Eu, pela minha parte, percorria o oleado com os dedos, ao acaso, levantando pedacinhos de tinta com a unha nos sítios onde estava estalado.
     «Paciência», tornou a mãe. «As coisas não hão-de correr sempre mal, deixa lá. O principal é uma pessoa não desanimar.»
     Saiu, a máquina de costura recomeçou a matraquear, mais forte e mais raivosa do que nunca. Voltei-me para a minha irmã, mergulhada na fazenda que a agulha mordia a correr. As pernas dela mal sustinham o ritmo do pedal, as veias do pescoço quase estouravam de tensas. Encostava a cabeça à agulha e toda a sua figura, abafada no cotim dos militares, parecia envolta numa desordem de retalhos e de linhas de coser.
     Senti um barulho de pratos na cozinha, as pancadas ocas do contador da água e, não tardou muito, a mãe estava de volta com o jantar:
     «Bem podias esperar pelo pai…»
     O gato saltou da floreira de cana para cima da mesa.
     «Chta, gato.» A minha mãe afastou-o com um safanão. «Quando o pai vier, vou ter que ouvir… Sabes bem que ele não gosta que coma cada um por sua vez.»
     Peguei num carapau, mastiguei-o com espinhas e tudo. Tinha pressa, comia e, sem perder tempo, enchia o púcaro de vinho.
     «Tira dos do fundo», continuava a minha mãe. «Destes maiores. Assim, confesso, nem a comida rende. Agora come o filho, agora come o pai… vida de ciganos, é o que isto me faz lembrar.»
     Sentada à minha frente, pendia-lhe sobre a testa uma madeixa de cabelos e os olhos piscavam-lhe no meio de muitas e pequenas rugas. Piscavam mais em certas ocasiões, muito particularmente quando estava vencida ou quando meditava.
     «Ao menos esses são unidos», acrescentou. «Nunca lhes falta trabalho.»
     […]

Pires, José Cardoso (2000). Amanhã, Se Deus Quiser. In Jogos
de Azar. (pp. 47-66). Lisboa: Planeta DeAgostini. pp. 49-53.


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