sexta-feira, 22 de março de 2013

José Cardoso Pires
Alexandra Alpha
Taverna em Fado Mudo
[excerto]

     Désanti guardava a ideia dum tasco localizado na banlieu – Braço de Prata, informou Sophia em aparte – um balcão com três ou quatro bêbados à volta dum cego que tocava guitarra amparado pelo guia. Fora dar ali, levado por madame (Sophia Bonifrates) que lhe queria apresentar um faquir desempregado para possível figurante do seu filme.
     O faquir não estava, na verdade só apareceria bastante depois, mas em compensação havia o cego, o guia e toda a trupe dos bêbados que frequentavam o local. Só isso já era um espectáculo, sobretudo a figura do guia que, como vieram a saber, era mudo mas não de nascença: mudo por qualquer tumor de garganta com uma estória muito maligna que o francês percebeu por alto e de través mas que apesar de tudo lá percebeu. Por conta de várias cervejas o bando de bêbados pôs-se a enumerar um sem-número de velhacarias praticadas por médicos e por enfermeiras desalmadas, e com isso pretendia denunciar os podres das batas brancas que governam os hospitais do pobre cá no nosso país. Para comprovar tais desgraças os bêbados exemplificavam com o mudo ali presente, o qual teria muito para contar se não tivesse saído das mãos dos ditos doutores malignos no estado em que se via. Pormenor a considerar, o padecente, cauteleiro de profissão, era filho daquele bairro e antes do tumor que o havia de calar tinha uma voz para o fado como poucos ou nenhum. Para o fado, quer-se dizer, para artista da canção nacional, elucidavam os bêbados batendo com dois dedos nas goelas, compreende o monsiú?
     Segue-se que, nesta conformidade e com a pendência para os acordes que lhe era reconhecida, não faltavam ao rapaz patuscadas e garçones, a ponto de no São Martinho, que é quando os bêbados são mais que as mães, os vizinhos terem de fazer uma maquete, uma quête, emendou a Sophia, isso, uma subscrição, disseram os bêbados, e era se o queriam ouvir. Isto, antes de o sacana do cancro, peço desculpa, lhe ter comido a voz, pois, enquanto fadista, o rapaz não dava vazão aos pedidos, verdade ou mentira?, perguntavam os bêbados ao mudo.
     O mudo ouvia, modestamente, girando a garrafa de cerveja sobre a mesa. Um artista que tinha ficado conhecido pelo fado do Arsenal e por outros fados de exclusivo não merecia ver-se assim moço de cego, a estender a mão à caridade pública. Os narradores de taberna não só chamavam a atenção dos forasteiros para a injustiça que estavam a presenciar como se olhavam entre si com piedade. Um deles abriu os braços, resignado:
     «Azares», disse ele. «A gente cá em Portugal chama a isto azares, que é que se há-de fazer?»
     «Mister, na nossa terra passa-se muita dificuldade», disse outro.
     Com mais algumas rodadas as tristezas já não pagavam dívidas e, sendo assim, alguém começou a cantar o Hino do Benfica acompanhado à guitarra pelo cego. Depois vieram uns versos ao jocoso, com licença da senhora, e até quadras populares onde a própria Sophia fez coro. Foi então que se ouviram na guitarra as notas do Fado do Arsenal: o bando dos bêbados calou-se imediatamente porque o mudo se tinha posto de pé e levantava a mão a impor silêncio e concentração.
     Lado a lado, ele e o cego enfrentaram a assistência, a guitarra a aclarar o tom, a afinar. E na altura própria, o mudo abriu as goelas. E pronunciou sem soltar um som a letra do Fado do Arsenal, batendo os lábios ao ritmo do instrumento e com as pausas, as voltas e os arrastados que mandava a regra. Fazia os gestos sentidos do fadista de raça, o meneio dos ombros, o prolongado fechar dos olhos, o peito arrogante na tirada mais funda. Mas sem uma palavra, sem uma nota. Parecia um homem a cantar numa redoma isolada à prova de som.
     Um por um, segunda surpresa, a assistência de bêbados pôs-se a cantar. Cantava com os olhos no silabar do fadista sem som, lendo-lhe a letra nos lábios e seguindo-os pelo ritmo, e era coisa única, disse François Désanti, ouvir um mudo na voz dum coro de bêbados. Um fenómeno dramático e grotesco e quase religioso. Como se fosse um ventríloquo que se fizesse ouvir em várias figuras ao mesmo tempo.
     […]

Pires, José Cardoso (1987). Alexandra Alpha.
Lisboa: Publicações Dom Quixote. pp. 111-113.


Páginas Paralelas:


s.a. (5.12.2008). “Cardoso Pires, o contador de Lisboa”. ípsilon – Público.

British Bar (Lisboa), frequentado por Cardoso Pires






Foto (2008) Disponível em
http://revelarlx.cm-lisboa.pt/gca/?id=1260









"A Lisboa boémia de José Cardoso Pires" em Revelar LX 

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