sexta-feira, 29 de março de 2013

Ruy Belo
O Portugal Futuro

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
 
Belo, Ruy (2004). Todos os Poemas (2ª ed.). Lisboa: Assírio & Alvim. p. 264.
Páginas Paralelas:
O poema dito por Mário Viegas

Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=VlRg2nG-MbE

quinta-feira, 28 de março de 2013

Pedro Tamen
Que é isto de silêncio?
Não ouve o marinheiro o mar
e ele ruge. Nem o mar
ouvirá jamais o marinheiro.

Que é isto de silêncio?
O cavador não ouve a cegarrega
nem pressentem ralos e cigarras
o aço da enxada.

Eis o ruído que não é connosco
por de nós ser parte:
– silêncio, pétala arriscada
da flor em tumulto.
Tamen, Pedro (2004). Que é isto de silêncio? Textos e Pretextos, 4, 177. Publicado pela primeira vez em 2001, em Retábulo das Matérias (Lisboa: Gótica).

Páginas Paralelas:
Biografia de Pedro Tamen disponível aqui

quarta-feira, 27 de março de 2013

Ruy Belo
A flor da solidão

Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos
Belo, Ruy (1997). Transporte no Tempo. Lisboa: Editorial presença. p. 28.
Páginas Paralelas:
Biografia de Ruy Belo na página Web do Instituto Camões

terça-feira, 26 de março de 2013

Ana Hatherly
O Poeta é um Guardador

o poeta é um guardador

guarda a diferença
guarda da indiferença

no incerto
guarda a certeza da voz

Hatherly, Ana (2001). O Poeta é um Guardador.
In Um Calculador de Improbabilidades. Lisboa: Quimera.

Páginas Paralelas:
Biografia e poemas de Ana Hatherly em um buraco na sombra
Conheça outros poemas de Ana Hatherly em POEMARGENS
Ana Hatherly – “O poeta é”, no Salão Nobre do Teatro Nacional D. Maria II

segunda-feira, 25 de março de 2013

FADO de COIMBRA 

Luiz Goes 
Homem Só, Meu Irmão

 
Disponível aqui



Tu, a quem a vida pouco deu,
que deste o nada que foi teu
em gestos desmedidos...
Tu, a quem ninguém estendeu a mão
e mendigas o pão dos teus sentidos,
homem só, meu irmão!

Tu, que andas em busca da verdade
e só encontras falsidade
em cada sentimento,
inventa, inventa amigo uma canção
que dure para além deste momento,
homem só, meu irmão!

Tu, que nesta vida te perdeste
e nunca a mitos te vendeste
– dura solidão –,
faz dessa solidão teu chão sagrado,
agarra bem teu leme ou teu arado,
homem só, meu irmão!

Disponível em Guitarrasde Coimbra IV


Páginas Paralelas:

“Luiz Goes – O Neo-Modernismo no Canto de Coimbra”
Disponível em O Canto e a Música de Coimbra

sexta-feira, 22 de março de 2013

José Cardoso Pires
Alexandra Alpha
Taverna em Fado Mudo
[excerto]

     Désanti guardava a ideia dum tasco localizado na banlieu – Braço de Prata, informou Sophia em aparte – um balcão com três ou quatro bêbados à volta dum cego que tocava guitarra amparado pelo guia. Fora dar ali, levado por madame (Sophia Bonifrates) que lhe queria apresentar um faquir desempregado para possível figurante do seu filme.
     O faquir não estava, na verdade só apareceria bastante depois, mas em compensação havia o cego, o guia e toda a trupe dos bêbados que frequentavam o local. Só isso já era um espectáculo, sobretudo a figura do guia que, como vieram a saber, era mudo mas não de nascença: mudo por qualquer tumor de garganta com uma estória muito maligna que o francês percebeu por alto e de través mas que apesar de tudo lá percebeu. Por conta de várias cervejas o bando de bêbados pôs-se a enumerar um sem-número de velhacarias praticadas por médicos e por enfermeiras desalmadas, e com isso pretendia denunciar os podres das batas brancas que governam os hospitais do pobre cá no nosso país. Para comprovar tais desgraças os bêbados exemplificavam com o mudo ali presente, o qual teria muito para contar se não tivesse saído das mãos dos ditos doutores malignos no estado em que se via. Pormenor a considerar, o padecente, cauteleiro de profissão, era filho daquele bairro e antes do tumor que o havia de calar tinha uma voz para o fado como poucos ou nenhum. Para o fado, quer-se dizer, para artista da canção nacional, elucidavam os bêbados batendo com dois dedos nas goelas, compreende o monsiú?
     Segue-se que, nesta conformidade e com a pendência para os acordes que lhe era reconhecida, não faltavam ao rapaz patuscadas e garçones, a ponto de no São Martinho, que é quando os bêbados são mais que as mães, os vizinhos terem de fazer uma maquete, uma quête, emendou a Sophia, isso, uma subscrição, disseram os bêbados, e era se o queriam ouvir. Isto, antes de o sacana do cancro, peço desculpa, lhe ter comido a voz, pois, enquanto fadista, o rapaz não dava vazão aos pedidos, verdade ou mentira?, perguntavam os bêbados ao mudo.
     O mudo ouvia, modestamente, girando a garrafa de cerveja sobre a mesa. Um artista que tinha ficado conhecido pelo fado do Arsenal e por outros fados de exclusivo não merecia ver-se assim moço de cego, a estender a mão à caridade pública. Os narradores de taberna não só chamavam a atenção dos forasteiros para a injustiça que estavam a presenciar como se olhavam entre si com piedade. Um deles abriu os braços, resignado:
     «Azares», disse ele. «A gente cá em Portugal chama a isto azares, que é que se há-de fazer?»
     «Mister, na nossa terra passa-se muita dificuldade», disse outro.
     Com mais algumas rodadas as tristezas já não pagavam dívidas e, sendo assim, alguém começou a cantar o Hino do Benfica acompanhado à guitarra pelo cego. Depois vieram uns versos ao jocoso, com licença da senhora, e até quadras populares onde a própria Sophia fez coro. Foi então que se ouviram na guitarra as notas do Fado do Arsenal: o bando dos bêbados calou-se imediatamente porque o mudo se tinha posto de pé e levantava a mão a impor silêncio e concentração.
     Lado a lado, ele e o cego enfrentaram a assistência, a guitarra a aclarar o tom, a afinar. E na altura própria, o mudo abriu as goelas. E pronunciou sem soltar um som a letra do Fado do Arsenal, batendo os lábios ao ritmo do instrumento e com as pausas, as voltas e os arrastados que mandava a regra. Fazia os gestos sentidos do fadista de raça, o meneio dos ombros, o prolongado fechar dos olhos, o peito arrogante na tirada mais funda. Mas sem uma palavra, sem uma nota. Parecia um homem a cantar numa redoma isolada à prova de som.
     Um por um, segunda surpresa, a assistência de bêbados pôs-se a cantar. Cantava com os olhos no silabar do fadista sem som, lendo-lhe a letra nos lábios e seguindo-os pelo ritmo, e era coisa única, disse François Désanti, ouvir um mudo na voz dum coro de bêbados. Um fenómeno dramático e grotesco e quase religioso. Como se fosse um ventríloquo que se fizesse ouvir em várias figuras ao mesmo tempo.
     […]

Pires, José Cardoso (1987). Alexandra Alpha.
Lisboa: Publicações Dom Quixote. pp. 111-113.


Páginas Paralelas:


s.a. (5.12.2008). “Cardoso Pires, o contador de Lisboa”. ípsilon – Público.

British Bar (Lisboa), frequentado por Cardoso Pires






Foto (2008) Disponível em
http://revelarlx.cm-lisboa.pt/gca/?id=1260









"A Lisboa boémia de José Cardoso Pires" em Revelar LX 

quinta-feira, 21 de março de 2013

Lídia Jorge
O Dia dos Prodígios
[excerto]

     […]
     Macário como se quisesse aliviar o coração, levantou uma perna e iniciou as cantigas. Temos a tarde toda, oh gente. Isto pode não ter fim. Os vizinhos sentiram que a sombra concreta podia começar a chegar à rua, apesar da lentidão, e por isso se sentaram em fila no poial de pedra. Macário de perna levantada entre os portais, apoiando o pé sobre o tampo duma cadeira. Palhetava fino e vibrado, requebrando a melodia como de soluços. Essa e ainda essa, e ainda outra parecida à primeira. Tiago pensava, vendo a palheta vibrar as cordas que o instrumento podia quebrar-se. Seguindo ele todos os movimentos da mão. E experimentou uma inveja saudosa de um outro mundo, onde ele próprio teria sido capaz de desferir a música sobre uma caixa de som. E esses pensamentos eram tristes. Vinham no fio e na ponta daquele requebro, vibrante e repicado, sem um som de canto. O bandolim do seu vizinho fazia-lhe representar mulheres que nunca se queixavam, nem perdiam os dentes, e que no entanto amavam muito e bem. Mulheres que morriam de pé e não se deixavam ver enterrar. Só para não deixarem nos amantes a lembrança da desfiguração. Por isso teve de dizer com licença. Macário parou, e Tiago disse. Um momento, homem, um momento. Muda de estilo, que essa faz-me humedecer a vista. Ou será do calor que faz? Então Macário concentrou-se sobre um último riso, fechou os olhos, iluminou os dentes e toda a cavidade da boca e começou também a cantar. Com o balanço de todo o corpo. Que por causa de uma cobrinha. Esmagada no terreiral. Toda a gente sua vizinha. Ai toda a gente. Toda a gente sua vizinha. Se afogara em cagaçal. Nesse momento chegavam as crianças atraídas pela música e pelo canto, em passo solene e chapéu fora, e o cantor repetiu a quadra de perna no ar. No final da copla, fechou completamente os olhos e juntou os dois pés. Levantou o bandolim no ar e disse. Tudo. Tudo o que canto e toco me sai directamente desta. Apontando a cabeça com o dedo.
– Compões bem, meu filho. Mas és perdido nesta terra. Disse Manuel Gertrudes.
São todas minhas e faço-as no momento em que as canto. Porque os ouvintes eram muitos e se aproximavam devagar para não interromperem, Macário acrescentou mais um palhetado vibrante de som. Que essa magana do pasto. Da espessura dum tostão. Morava em todas as casas. À espera de ocasião. Ai à espera de ocasião. E todos disseram. Ai à espera de ocasião. Com entusiasmo de compostura. Ai à espera de ocasião. Macário fazia agradecimento, deixando a vizinhança entoar sozinha. E virava o alto da cabeça nos joelhos. Os cabelos soltos como erva escura por segar.
[…]
Jorge, Lídia (1995). O Dia dos Prodígios (7ª ed.).
Lisboa: Publicações Dom Quixote. pp. 178-179.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Camilo Castelo Branco
Eusébio Macário
[excerto]

     […]
     Todos a pedirem-lhe que cantasse, que tocasse. O Fístula disse que só tocava banza e guitarra. D. Felícia lembrou que na cocheira havia quem tocasse guitarra: era o trintanário, um mulato que tinha alegrado de cantares torpes a cocheira do Lopes alquilador. Que viesse a guitarra.
     O José Macário, feito um grande silêncio, afinava, premia as cordas, correndo-as de alto a baixo, distendendo-as, tirava acordes, transportes segundo a arte, subia diatonicamente, feriu sustenidos, pelas regras da oitava; depois tocou uma contradança, o hino de Pio IX.
     – O fado, o corrido! – pediu D. Pascoela.
     – Sim, um fadinho! – muitas vozes a pedirem fadinhos.
     – Mas que seja decente – observou Eusébio Macário circunspectamente.
     – Isso nem é preciso dizê-lo – emendou Trigueiros.
     – O José sabe muitos decentes; – disse a baronesa – olha, diz aquele:

                                                               Passarinhos que cantais
                                                               Nesse raminho de flores,
                                                               Cantai vós, chorarei eu,
                                                               Que assim faz quem tem amores.

     E o Fístula:
     – Vá lá.
     E sentou-se ao centro, ao pé da jardineira, estendeu uma perna, cruzou a outra, numa atitude gingada, atirou as melenas frisadas para trás das orelhas, arregaçou os punhos, pôs o charuto no mármore, inclinou o tronco sobre o braço da guitarra, e dedilhou em harpejos gementes o prelúdio do fado de Coimbra. Começou-se então a sentir um tremelicar de cadeiras e um vibrátil sapatear de tacões de sapatinhos ao compasso das notas plangentes. Eram a baronesa do Rabaçal e D. Pascoela Trigueiros que se remexiam involuntariamente, obedecendo a uma fatalidade nervosa de saracote, que lhes punha nas nalgas e na cintura uns derrengues lascivos de uma brejeirice encantadora. Houve gargalhada. A Pascoela baixou o rosto para arranjar um pudor à sombra do leque; a baronesa confessou ingenuamente que não podia resistir àquilo.
     Depois o Fístula cantou a glosa da quadra, que a irmã lhe dissera, com umas tonalidades roucas, de sentimentalidade canalha, com intermissão de uns oras e de uns ais mui langorosos, o zing fadista de cervejarias e botequins de lacaios. Havia versos que ele cantava com morbidezas gaiatas, pondo os olhos nos florões coloridos do estuque. Dirigia-se ao passarinho:

                                                               Vós sois o mimo do Fado,
                                                               Eu da Fortuna o desprezo;
                                                               Vós em liberdade, eu preso,
                                                               Vós feliz, eu desgraçado.
                                                               […]


Branco, Camilo Castelo (1991). Eusébio Macário. Porto: Porto Editora. pp. 97-98.

terça-feira, 19 de março de 2013

FADO FALADO
Aníbal Nazaré e Nelson de Barros

Fado Triste
Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar
Ouve-se a voz
Voz inspirada de uma raça
Que mundo em fora nos levou
Pelo azul do mar
Se o fado se canta e chora
Também se pode falar

Mãos doloridas na guitarra
que desgarra dor bizarra
Mãos insofridas, mãos plangentes
Mãos frementes e impacientes
Mãos desoladas e sombrias
Desgraçadas, doentias
Quando à traição, ciúme e morte
E um coração a bater forte

Uma história bem singela
Bairro antigo, uma viela
Um marinheiro gingão
E a Emília cigarreira
Que ainda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
Em dia de procissão
Da Senhora da Saúde

Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe
Trazia-os ele do mar
Eram bravios e salgados
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinho
Que os sapatos dele e dela
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama

Pela janela da Emília
Entrava a lua
E a guitarra
À esquina de uma rua gemia,
Dolente a soluçar.
E lá em casa:

Mãos amorosas na guitarra
Que desgarra dor bizarra
Mãos frementes de desejo
Impacientes como um beijo
Mãos de fado, de pecado
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher
Para o despir e para o beijar

Mas um dia,
Mas um dia santo Deus, ele não veio
Ela espera olhando a lua, meu Deus
Que sofrer aquele
O luar bate nas casas
O luar bate na rua
Mas não marca a sombra dele
Procurou como doida
E ao voltar da esquina
Viu ele acompanhado
Com outra ao lado, de braço dado
Gingão, feliz, levião
Um ar fadista e bizarro
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro
Lume e cinza na viela,
Ela vê, que homem aquele
O lume no peito dela
A cinza no olhar dele

E o ciúme chegou como lume
Queimou, o seu peito a sangrar
Foi como vento que veio
Labareda atear, a fogueira aumentar
Foi a visão infernal
A imagem do mal que no bairro surgiu
Foi o amor que jurou
Que jurou e mentiu
Correm vertigens num grito
Direito ou maldito que há-de perder
Puxa a navalha, canalha
Não há quem te valha
Tu tens de morrer
Há alarido na viela
Que mulher aquela
Que paixão a sua
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua

Mãos carinhosas, generosas
Que não conhecem o rancor
Mãos que o fado compreendem
e entendem sua dor
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos para acarinhar
Mãos que brigam, que castigam
Mas que sabem perdoar

E pouco a pouco o amor regressou
Como lume queimou
Essas bocas febris
Foi um amor que voltou
E a desgraça trocou
Para ser mais feliz
Foi uma luz renascida
Um sonho, uma vida
De novo a surgir
Foi um amor que voltou
Que voltou a sorrir

Há gargalhadas no ar
E o sol a vibrar
Tem gritos de cor
Há alegria na viela
E em cada janela
Renasce uma flor
Veio o perdão e depois
Felizes os dois
Lá vão lado a lado
E digam lá se pode ou não
Falar-se o fado.


“Fado falado” por João Villaret

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=Aj0cNJpJnFE


Páginas Paralelas:
Veja “O Fado na Arte – pintura” no blog ComJeitoeArte

segunda-feira, 18 de março de 2013

Literatura e Fado
Dedicamos esta semana a textos relacionados com o Fado.
David Mourão-Ferreira
Um Amor Feliz
[excerto]

     […]
     No retiro de fados do Bairro Alto onde acabámos por ancorar já eram escassas, entre os clientes, essas broncas cataduras de frustrados aspirantes a Marialvas que são hoje directores-gerais, passadores de droga, deputados da nação ou membros da segurança de qualquer partido; já as fadistas, desengraçadinhas e meio sonolentas, pouco ou nada se preocupavam em retocar a maquilhagem, desengelhar os collants, alisar as franjas dos xailes; já os violistas e o guitarrista pacatamente se conluiavam para em surdina ensaiarem novas variações destinadas a um espectáculo no Coliseu, dali a duas semanas, que talvez até fosse transmitido pela TV; já as empregadas e os empregados, elas vestidas de varinas, eles de campinos, só com dificuldade acediam a desencostar-se das ombreiras das portas, como se as ombreiras, sem eles, ficassem lamentavelmente privados de preciosos elementos decorativos. Embora a casa estivesse às moscas, esperámos uns bons vinte minutos até que nos trouxessem um canjirão de vinho tinto.
     […]
     Os violistas e o guitarrista acabavam felizmente de atacar com brio umas frenéticas variações que deveriam constituir o prelúdio do último round dos fadinhos: decerto em honra do Saltimbanco e da companheira, que pareciam muito íntimos do pessoal artístico da casa. Pela nossa parte, seria indecoroso continuarmos ali à conversa. Silêncio, pois, que se ia cantar o fado.
     No fim do round – de resultado nulo – eis que da mesa do Saltimbanco se levanta a companheira do Saltimbanco para vir sussurrar umas palavrinhas aos tocadores, para depois ir pedir o xaile à fadista que tinha acabado de actuar. Então, dirigindo-se especialmente à nossa mesa, informou a reduzida assembleia de que ia tentar interpretar um fado que pertencia ao reportório da grande Amália (e que a grande Amália, se viesse a sabê-lo, lho desculpasse!), cuja letra era da autoria de uma pessoa ali presente; e nomeou e apontou o seu amigo, a quem ainda tive tempo de murmurar:
     «Nem precisas de te fazer gestor… Estás cá com uma destas sortes!»
     Então, num doméstico fio de voz, que deve ser aprazível de ouvir quando ela em casa desligue o aspirador ou até o secador do cabelo, os primeiros versos ergueram-se, mais lânguidos que vibrantes, mais moles que lânguidos:

     Fui à praia, e vi nos limos
     a nossa vida enredada…
     Ó meu amor, se fugirmos,
     ninguém saberá de nada!

     Com o meu espírito prosaico, fiquei a matutar naquilo; e, no fim do fado, depois de o seu amigo ter ido agradecer à amadora intérprete, com beija-mão e tudo (mas ela pespegou-lhe dois chochos nas faces) e de se ter desentranhado em sorrisos de aplauso para o embevecido Saltimbanco, não me contive em observar:
     «Com que então se fugirem ninguém saberá de nada? Que raio de liberdade poética! Se fugirem é que fica mesmo toda a gente a saber de tudo…»
     […]

Mourão-Ferreira, David (1987). Um Amor Feliz
(3ªed.). Lisboa: Editorial Presença. pp. 267-271.


Páginas Paralelas:

Descubra a relação de David Mourão-Ferreira com o Fado no Portal do Fado e no site Museu do Fado.
Notícia sobre a criação do prémio David Mourão-Ferreira, oferecido pelo Centro Cultural de Belém e pelo Museu do Fado, que será atribuído, a partir de 2014, à melhor tese de mestrado sobre Fado e Literatura, disponível na Gazeta dos Artistas
Amália canta “Barco Negro” de David Mourão-Ferreira em Cannes (1962) 


Barco Negro
David Mourão-Ferreira

De manhã temendo que me achasses feia,
acordei tremendo deitada na areia,
mas logo os teus olhos disseram que não
e o sol penetrou no meu coração.

Vi depois, numa rocha, uma cruz,
e o teu barco negro dançava na luz;
vi teu braço acenando, entre as velas já soltas.
Dizem as velhas da praia que não voltas...
São loucas! São loucas!

Eu sei, meu amor,
que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor
me diz que estás sempre comigo.

No vento que lança
areia nos vidros,
na água que canta,
no fogo mortiço,
no calor do leito,
nos bancos vazios,
dentro do meu peito
estás sempre comigo.

Disponível em http://www.tabacaria.com.pt/poesia/textos/Barco_Negro.htm (onde pode ver o poema anotado)