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Esta é, como de início adverti, a perspectiva particular de um particular escritor de livros, alguns deles provavelmente “para” crianças, ou também “para” crianças (porque sei lá para quem os livros que escrevo são!). Nada é decerto tão perigoso do que a certeza de que se tem razão, e estou convicto de que outros escritores com experiências literárias substancialmente diferentes hão-de dizer, sobre a matéria, coisas do mesmo modo substancialmente diferentes. Por outro lado, a verdade é que a perspectiva literária sobre a literatura não é a única possível. No caso da literatura “para” crianças, a “língua que os livros falam” pode ser, por exemplo, e durante séculos foi [e ainda hoje muitas vezes é], principalmente a da educação – moral, religiosa, ou outra – ou seja, a da razão.
Mas eu não sou um educador, e a única forma de educação que sou capaz de vislumbrar na literatura é a educação para a liberdade. Não a liberdade política, ou as diferentes liberdades em que a liberdade política pode analisar-se, mas a liberté libre (e talvez se possa igualmente dizer liberte livre) de Rimbaud.
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Durante muito tempo, os temas da literatura “para” crianças eram limitados, em virtude, principalmente, da sua assumida função “educativa” e das próprias concepções dominantes de “educação”.
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A importância da literatura para a criança, como para o adulto, é que ela é um “organizador fundamental”, que protege a vida contra a automatização e contra a “tragédia da rotina” que ameaça a afectividade e as relações. No caso da criança, a literatura pode ajudá-la a transformar-se naquilo que ela mais profundamente é. Seguindo ainda uma vez a lição de Jacobson sobre poesia, a criança que lê torna-se diferente, brinca diferentemente, relaciona-se diferentemente com o mundo e consigo mesma, ama diferentemente, exprime-se e comove-se diferentemente. Porque a literatura, provavelmente mais e mais profundamente do que a “educação”, transforma.
O momento da leitura [mesmo quando alguém lê para nós, ou quando lemos em conjunto] é um momento de solidão e de liberdade. Ler é decifrar-se, ler-se a si mesmo naquilo que se lê. A responsabilidade do escritor vem principalmente daí. Steiner cita um salmo que fala de “pôr a mão sobre o ser essencial do outro”. É algo parecido que se passa no mágico e intenso momento de partilha de identidades em que a escrita se encontra com a leitura. Nesse momento, todo o leitor é sempre uma criança, tão vulnerável quanto o próprio escritor, com que se confunde, pois do mesmo modo que o escritor é um leitor lendo-se por escrito, também cada leitor [ou, talvez melhor, cada leitura] reescreve o que lê e se inscreve no que lê.
A literatura, diz Pound, é linguagem carregada de sentido; de sentidos, digo eu, pois que uma obra literária é um espaço aberto e evasivo de sentidos, de todos os sentidos que as palavras fazem e não fazem e dos sentidos que o próprio sentido umas vezes faz e outras vezes não faz.
Por isso é que, do ponto de vista de um escritor [e também de um leitor] de literatura, a língua que os livros falam, e particularmente a língua que os livros de literatura “para” crianças falam, é fundamentalmente a da liberdade, uma língua multímoda em cujo interior tudo é possível, o dito, o não dito, o interdito e o entredito. Como nos jogos infantis de faz de conta.
Talvez a infância seja uma espécie de ficção que contamos a nós mesmos. Às vezes sob a forma de literatura “para” crianças. E, quem sabe?, “dirigindo-a” [mesmo se não nos apercebemos disso] a nós mesmos, ou àquilo que, em nós mesmos, profundamente somos, mais talvez do que às próprias crianças.
Manuel António Pina (2010). “A Língua Que os Livros “Para” Crianças Falam”. In Duarte, Rita Taborda (coord.). XVIII Encontro de Literatura para Crianças Palavra de Trapos. A Língua que os Livros Falam. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. pp. 20-23
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