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Viagens são assim: oportunidades de iniciação. Essa é a sua magia.
Mas é bom dizer desde já que as viagens com sentido iniciático não são apenas aquelas feitas no mundo de fora. Mais tarde vim a descobrir que viagens no mundo de dentro podem perfeitamente produzir o mesmo efeito. Como as viagens que fizemos nos nossos sonhos, ou mesmo nos devaneios quando despertos.
Viajar, pelo mundo ou por dentro de si mesmo, é fundamental para os processos do crescimento pessoal e do autoconhecimento. Por quê? Em primeiro lugar, porque tomar contacto com lugares desconhecidos, pelo simples facto de tirar a pessoa do seu quotidiano habitual, obrigando-a a estar mais desperta e atenta, representa a oportunidade de pôr em prática a capacidade de adaptar-se a situações novas. Adaptabilidade é o melhor sinónimo de inteligência: sem a capacidade de adaptação aplicada a qualquer situação da vida, não se vai longe no aprendizado da relação harmoniosa consigo mesmo e com o mundo.
Terá a viagem, em si mesma, algum sentido de tipo espiritual? Será ela um acto sagrado? Na época actual do turismo de massas, em que se desenvolve inclusive uma nova área científica chamada sociologia do turismo, será ainda possível distinguir o valor simbólico original que leva a pessoa a viajar, a abandonar temporariamente o conhecido em troca do desconhecido?
Qualquer psicólogo, filósofo ou poeta sabe que o simbolismo da viagem, numa perspectiva ao mesmo tempo psicológica e transcendental, representa a procura e a descoberta de um centro espiritual interior. Aquilo que Carl Jung chamava de self e Gautama Buda chamava de eu superior. A viagem exprime também um desejo profundo de transformação interior que se projecta no desejo da viagem exterior. Representa, mais que um simples deslocamento físico no espaço e no tempo, a necessidade de experiências novas e renovadoras. Como consequência, entende-se que estudar, investigar, procurar intensamente o novo e o oculto são também modalidades de viajar, ou seja, equivalentes espirituais e simbólicos da viagem.
Viagem, definida de outro jeito, é transformação pelo movimento. E todo o movimento que acontece na nossa vida converge de algum modo para aquele centro espiritual interno.
O italiano Giuseppe Tucci, um dos grandes orientalistas e exploradores da Ásia neste século, já no fim da vida revelou a um grupo de alpinistas algo importante a respeito do sentido profundo das viagens dos grandes exploradores. Tucci falava com total conhecimento de causa. Além de ser ele mesmo um grande apaixonado pelas viagens, conhecera praticamente todos os descobridores importantes do seu tempo. Todos, segundo ele, cultivaram secretamente a esperança de descobrir um dia, para além de qualquer passo esquecido de montanha, um vale desconhecido e risonho, habitado por gente que permanecera séculos isolada do resto da humanidade: o mito do reino perdido de Shangri-lá. Poderoso símbolo do reino interior ou espiritual, esse mito teve e tem cultores ilustres. Mas Tucci não zombava daquilo que um pensador racionalista convencional poderia considerar uma simples fraqueza: “Só quem caminhou durante semanas entre montanhas desertas pode entender. O desejo de conhecer o que se esconde por trás da última montanha torna-se obsessivo… Uma espécie de miragem que seduz ao mesmo tempo a razão e a fantasia.”
Partir para o desconhecido pode ser assustador. Mas, para quem tem na alma a inquietude do vento, o desejo da descoberta supera o medo e instiga a caminhada. Empurra o peregrino em direcção à meta sagrada e secreta, o seu Shangri-lá pessoal.
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Luis Pellegrini (1999). Viagens à Procura do Self: Os Pés Alados de Mercúrio. Lisboa: Pergaminho. pp. 10-11.
Veja tembém:
Blog de Luis Pellegrini: http://www.luispellegrini.com. br/
Poema de Tagore dito por Luís Pellegrini, em português, e cantado por Ratnabali, em bengali: http://www.youtube.com/watch? v=GIU0x4iDp0o
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