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Gosto imenso de apanhar do chão castanhas, trapos velhos, principalmente papéis. Sinto prazer em pegar neles, em fechá-los na mão; pouco falta para os levar à boca como fazem as crianças. Anny ficava furiosa quando me via levantar por uma ponta bocados de papel pesados e sumptuosos, mas provavelmente sujos de trampa. No Verão ou no começo do Outono encontram-se nos jardins pedaços de jornal que o sol crestou, secos e quebradiços como folhas caídas, tão amarelos que os diriam passados por ácido pícrico. Outras páginas, no Inverno, aparecem pisadas, trituradas, maculadas, voltam à terra. Outras, novinhas e, às vezes, lustrosas, muito brancas, palpitantes, assentam no chão como cisnes, mas já a terra, por baixo, as vai atolando. Torcem-se, arrancam-se da lama, mas é para se irem estatelar um pouco mais longe, definitivamente. Tudo isso dá prazer apanhar. Às vezes limito-me a tatear essas folhas, olhando-as de muito perto, outras vezes rasgo-as para lhes ouvir o largo crepitar, ou então, se estão muito húmidas, deito-lhes fogo, o que tem a sua dificuldade; depois limpo a palma das mãos cheias de lama a uma parede ou ao tronco duma árvore.
Ora bem, hoje pusera-me eu a olhar para as botas fulvas dum oficial de cavalaria que vinha a sair do quartel. Ao segui-las com os olhos, vi um papel que estava caído ao lado duma poça. Julguei que o oficial, com o calcanhar, fosse enterrar o papel na lama, mas não: dum passo só, ultrapassou o papel e a poça. Aproximei-me: era uma página de papel pautado arrancada certamente dum caderno escolar. A chuva tinha-a repassado e retorcido; estava cheia de bolhas e de tumefacções, como uma mão queimada. O traço vermelho da margem desbotara, tornando-se uma humidade cor-de-rosa; em alguns sítios a tinta tinha escorrido. A parte de baixo da página estava escondida sob uma crosta de lama. Abaixei-me; já sentia o prazer de mexer naquela massa tenra e fresca que me rolaria entre os dedos em bolinhas cinzentas... Não pude.
Fiquei curvado um segundo; ainda li: «Ditado – O Mocho Branco»; depois endireitei-me, de braços caídos. Já não sou livre, já não posso fazer o que quero.
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Jean-Paul Sartre (1976). A Náusea. (António Coimbra Martins, Trad.). Mem Martins: Publicações Europa-América. pp.18-19.
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