Os meus pés simplesmente vão e para trás a minha mente ficou.
Os meus olhos vidram o passado, para a frente querem olhar mas nada vêem...
Vazio...
É tudo o que existe.
Uma camada esconde os meus olhos, como a Lua esconde o Sol num eclipse.
A minha mente divaga por aí, e o meu corpo, sem alma, simplesmente anda.
Mas parece que por mais passos que dê... o cenário apenas escurece, como se recuassem no tempo. Como se tudo se movesse e apenas eu fico no mesmo local.
Penso: “Nada mais do que é poderia ser pior”
Ironia.
A Terra treme.
O chão abre-se.
E eu?
Caio
Caio num vazio sem fim.
Um vazio frio e moribundo.
Não importa, nada mais importa.
Quase não se vê a luz lá em cima.
Sou apenas um pedaço de carne.
Nada importa.
Ninguém para me agarrar.
Ninguém para me salvar.
Ninguém para lavar as minhas mágoas.
Ninguém para me dizer “adoro-te, sê forte, força!”
Estou sozinha...
Apenas tu importavas e nem tu me salvaste, deixaste-me cair.
Neste abismo de desespero, de tristezas e mágoas, de confiança destruída, de promessas e juras esquecidas!
Eu tinha tudo!
Agora não tenho nada...
Não tenho forças.
Não tenho alegrias.
O meu sorriso desapareceu.
O que de mim restava, fugiu contigo.
E aqui ficaram carne e ossos, abandonados pelo espírito.
Um final feliz? É o que se espera.
Ao fundo cheguei...
E aqui
Fiquei
Poema inédito de Alexandra Lota
Nota: Alexandra Lota é aluna do 2º ano do curso de Artes Plásticas e Multimédia do IPBeja.
Olhei o horizonte e vi o sol perder, um a um, os seus raios de laranja e vermelho.
Vi-o, insaciável, roubando a cor a este mundo onde vivo. Onde por vezes não quero viver.
Cheguei à conclusão de que quem elogia a beleza vibrante da cor, nunca observou a superior beleza daqueles minúsculos pontos brancos, pequenos bocados de luz que o sol não levou com ele, cintilando sobre uma vastidão de preto.
Cheguei à conclusão de que quem admira o sol, fá-lo pois nunca admirou a lua.
23 de Abril de 2008
Dançamos sem música.
8 de Maio de 2008
Escreves palavras amarelas. Rapidamente as apago com um qualquer objecto que para tal possa ser usado. Pego na caixa dos lápis. Tiro um lápis vermelho, esperando palavras de amor.
Dou-to para a mão e, com ele, tu escreves palavras zangadas, raivosas. Rapidamente to tiro de novo. Dou-te um lápis azul, esperando que te acalme.Com ele falas do frio da morte. O roxo lembra-te de pesadelos passados. O verde da esperança, para ti é nojo.
Acabam-se os lápis. Arrumo-os na sua caixa. Pego neles, e viro-te as costas.
4 de Junho de 2009
Não passo de um jogo para ti certo?
Não passo de um tabuleiro de xadrez sobre o qual jogas as tuas peças.
Usas estratégias sujas que não vão falhar contra mim, e tu sabes.
Conheces-me bem demais.
Roubas-me a vista, derrubas as minhas defesas, afastas de mim a racionalidade e quando me vês fraca preparas-te para atacar.
Debaixo do sorriso que esboças perante a minha aparente confusão, a tua língua treina um 'xeque'.
O que não sabes, é que enquanto pensavas a próxima jogada, ganhei-te eu.
E disse, silenciosamente por entre um sopro quente:
Acordo. Onde estou? Nunca vi este sítio. Nunca estive neste sítio. O que é que se passou? Levanto-me. Sinto-me sem forças. Ainda assim, começo a andar. Procuro saber o que se passou. Ninguém. Não vejo ninguém. Há muita desarrumação. Papéis. Vejo papéis e pego num. Tento ler. Parecem papéis de hospital. Se calhar estou num hospital e estou doente. Vejo os sinais de <Saída> e sigo-os.
Saio. Na rua, não há ninguém. Não há vestígios de ninguém. Há muita desarrumação na rua e no meio disto tudo não há nada. Está tudo cinzento. Parece que ardeu tudo. Até o céu parece que ardeu. Não há vestígios de nada com vida. Caminho por este sítio. Saio deste sítio. Caminho por um caminho e sinto-me sem forças.
Paro. Sento-me. Descanso. Não há vestígios de nada. Sem forças levanto-me. Olho para trás e reparo que o sítio que deixei para trás é uma pequena vila em ruínas. O que é que se passou? Deixo a vila para trás e caminho em busca de água. Um ribeiro. Não há vestígios de nada com vida. De repente, pareceu-me ter visto algo verde. De pequeno tamanho mas, ainda assim, verde. Olho à volta à procura.
Talvez tenha sido uma alucinação. Continuo à procura e, finalmente, encontro. Aproximo-me com curiosidade de saber o que seja. Reparo que é uma belíssima pequena flor. No meio de tudo isto sem nada existe esta pequena flor. Olho em volta em busca de mais alguma. Não há mais nenhuma. Olho novamente para a flor e confirmo se não será uma alucinação.
A flor está aqui comigo. Não há mais vestígios de nada com vida. Sento-me. Contemplo a flor. A sua beleza é divinal e a sua existência é um milagre. Aproximo-me da flor. É realmente bela. Penso que poderia passar aqui o resto dos meus poucos dias de vida. A flor dança para mim com o vento e ao som do vento. De certa forma, a flor parece que se ri para mim. Eu rio-me para ela. O vento cala-se e a dança acaba. Para agradecer à flor a sua dança, aproximo-me mais e tento beijá-la. Fecho os olhos e aproximo-me ainda mais.
Beijo-a. Sinto as suas pétalas nos meus lábios e sinto o seu perfume. Por segundos, aprecio a delicadeza do momento. Abro os olhos. Reparo que, entretanto, caiu uma pétala. Estupefacto com o acontecimento, afasto-me um pouco. Acreditando que a culpa fosse do vento e não minha, aproximo-me outra vez e tento mais um beijo. Desta vez, o toque da flor é mais intenso. De olhos fechados, sinto o toque de cada pétala nos meus lábios. Abro os meus olhos e, para meu espanto, vejo que caíram todas as pétalas, à excepção de uma.
Facas. Sinto que o meu beijo e a minha paixão mataram esta flor. Sinto facas a cortarem-me por dentro. Sinto facas a cortarem o momento e sinto que o toque do meu beijo foi como o golpe de uma destas facas que me rasgam. Frágil, a minha flor parece que tenta mais uma dança ao vento. Afasto-me um pouco e contemplo o momento. Mas depressa me apercebo que não há vento. Não há dança. A flor, cada vez mais inclinada, deixa cair a sua última pétala e acaba por cair no chão por cima de todas as suas pétalas. Com as facas a rasgarem-me cada vez mais, sinto-me quase morto. Sem forças enterro a flor e as pétalas com a esperança de que a flor nascerá outra vez para mim. E assim aqui fico. Aqui fico a olhar para o monte da terra. Aqui fico e com as minhas lágrimas rego a minha flor.
À tua espera, aqui ficarei…
Texto inédito de Adriano Guerreiro, com ilustrações de Manuel Ribeiro
Nota: Adriano Guerreiro e Manuel Ribeiro são alunos do 2º ano do curso de Artes Plásticas e Multimédia do IPBeja.
Uma Torre de Babel com 25 metros de altura, construída em espiral com 30 mil livros de todas as línguas, foi erigida numa praça do centro de Buenos Aires por iniciativa da artista argentina Marta Minujin.
"A ideia é unir todas as raças através do livro", explicou a artista sobre a sua obra monumental que será inaugurada, na próxima quarta-feira, e "existirá" na praça San Martin até ao final do mês.
A artista decidiu criar esta Torre de Babel, porque Buenos Aires é a Capital Mundial do Livro 2011, proclamada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
A partir de quinta-feira, os seus sete andares podem ser subidos gratuitamente por grupos de até 100 pessoas e a visita será acompanhada por uma banda sonora criada por Marta Minujin, que dá a ouvir a palavra "livro" em todas as línguas do mundo.
Perto de metade dos livros que serviram de "tijolos" para a construção da torre foi oferecida por 50 embaixadas em Buenos Aires, mas a outra metade vem de doações de milhares de pessoas mobilizadas graças a uma campanha pública para esta "obra de participação maciça", nas palavras da artista.
No último dia de exposição da peça, 28 de Maio, os visitantes podem escolher um livro na língua da sua preferência e levá-lo.
Alguns dos outros livros serão dados a bibliotecas e os restantes serão catalogados e formarão a primeira colecção multilingue da capital argentina, baptizada como Biblioteca de Babel, em homenagem à "criatividade e à cultura de todos os povos do mundo", indicou.
No rés-do-chão da torre, podem ver-se obras de literatura, história e geografia mundiais. O primeiro e o segundo andares são dedicados a livros do continente americano, o terceiro e o quarto à Europa, o quinto e o sexto à Ásia.
Esta Torre de Babel lembra uma outra criação de Marta Minujin, o Partenon dos Livros, construído em 1983 em Buenos Aires com títulos proibidos durante a ditadura militar (1976-83), para uma reflexão sobre a censura.
Conhecida pelas suas criações "habitáveis" formadas por outros materiais como almofadas ou garrafas, que convidam o público a entrar na obra para a viver, Marta Minujin é uma pioneira do maior movimento artístico dos anos 1960 na Argentina, o Institut Di Tella.
A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada
Eliane Brum
Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.
Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.
Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.
Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.
Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?
(…)
Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.
(…)
O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.
(…)
Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.
(…) A verdadeira divindade do homem branco é o metal redondo e o papel forte a que ele chama dinheiro. Quando se fala a um Europeu do Deus do amor, ele faz uma careta e sorri. Sorri de tão ingénua maneira de pensar. Quando lhe estendem uma peça de metal redondo e brilhante ou um papel grande e forte, logo os seus olhos brilham e a saliva lhe assoma aos lábios. O dinheiro é o objecto do seu amor, o dinheiro é a sua divindade. Todos os homens brancos pensam nisso, até mesmo a dormir. Muitos há cujas mãos se tornam aduncas e semelhantes às patas da grande formiga dos bosques, à força de manejarem a todo o instante o metal e o papel. Muitos há cujos olhos se tornaram cegos à força de contarem o dinheiro. Muitos há que pelo dinheiro sacrificaram o riso, a honra, a consciência, a felicidade e até mesmo mulher e filhos. Quase todos eles sacrificam a saúde ao metal redondo e ao papel forte, isto é, ao dinheiro. Trazem-no dentro dos panos, dobrado e metido em duras peles.
(…)
É preciso notar que nas terras do homem branco é impossível viver sem dinheiro, uma só vez que seja, do nascer ao pôr do sol. Se não tiveres dinheiro nenhum, não poderás matar a fome nem mitigar a sede, não encontrarás esteira para a noite, serás lançado no fale pui pui [prisão] e falar-se á de ti em muitos e variados papéis [jornais]; tudo isto só por não teres dinheiro! Tens que pagar, isto é, tens que dar dinheiro pelo chão sobre o qual caminhas, pelo sítio onde se encontra a tua cabana, pela esteira onde passas a noite, pela luz que ilumina a tua cabana. Tens que pagar para teres direito a disparar sobre um pombo ou para banhares o teu corpo no rio. Sempre que queiras ir aos lugares onde os homens costumam folgar, onde eles cantam e dançam, ou sempre que queiras pedir um conselho ao teu irmão, terás que dar muito metal redondo e papel forte em troca. Por tudo tens que pagar. (…) Até para nasceres tens que pagar e quando morreres a tua aiga [família] tem que pagar pela tua morte, para poder depositar o teu corpo na terra e pela grande pedra que te põem sobre a tumba, em sinal de recordação.
Descobri uma única coisa pela qual se não pede ainda dinheiro na Europa, coisa que cada um pode fazer as vezes que quiser: respirar o ar. Julgo que terá ficado esquecido, mas não me admirava nada que, se as minhas palavras fossem ouvidas na Europa, não exigissem logo, por via disso, algum metal redondo e algum papel forte. Porque os Europeus estão sempre à cata de novos motivos para pedir dinheiro.
(…)
Todos nós, meus sábios irmãos, somos pobres. A nossa terra é a mais pobre à luz do sol. Não temos metal redondo e papel forte que cheguem para encher um baú. Segundo o modo de pensar do Papalagui [o Branco; o Senhor], somos uns pobres mendigos. E no entanto! quando vejo os vossos olhos e os comparo com os dos ricos aliis [amos], os deles parecem-me embaciados, mortiços e cansados, ao passo que os vossos irradiam, como a grande luz, alegria, força, vida e saúde. (…) Prezemos os nossos hábitos, que não permitem que um possua imenso e o outro nada, ou que um possua muito mais que o outro! E assim não nos tornaremos, em nosso coração, iguais ao Papalagui, que é capaz de se sentir feliz e contente mesmo quando, ao lado, o seu irmão está triste e infeliz.
Tuiavii de Tiavéa. (1989). O Papalagui. Lisboa: Antígona. pp. 41-49.*
* Esta obra contém os discursos do chefe de tribo Tuiavii de Tiavéa, da ilha de Upolu, na Samoa, destinados aos seus compatriotas e recolhidos pelo escritor alemão Erich Scheurmann (1878-1957), que viveu nesta comunidade por mais de um ano. O livro foi publicado pela primeira vez, na Alemanha, em 1920. Esta é uma tradução de Luiza Neto Jorge, a partir da versão francesa de Urs Dominique Sprenger.
Gosto imenso de apanhar do chão castanhas, trapos velhos, principalmente papéis. Sinto prazer em pegar neles, em fechá-los na mão; pouco falta para os levar à boca como fazem as crianças. Anny ficava furiosa quando me via levantar por uma ponta bocados de papel pesados e sumptuosos, mas provavelmente sujos de trampa. No Verão ou no começo do Outono encontram-se nos jardins pedaços de jornal que o sol crestou, secos e quebradiços como folhas caídas, tão amarelos que os diriam passados por ácido pícrico. Outras páginas, no Inverno, aparecem pisadas, trituradas, maculadas, voltam à terra. Outras, novinhas e, às vezes, lustrosas, muito brancas, palpitantes, assentam no chão como cisnes, mas já a terra, por baixo, as vai atolando. Torcem-se, arrancam-se da lama, mas é para se irem estatelar um pouco mais longe, definitivamente. Tudo isso dá prazer apanhar. Às vezes limito-me a tatear essas folhas, olhando-as de muito perto, outras vezes rasgo-as para lhes ouvir o largo crepitar, ou então, se estão muito húmidas, deito-lhes fogo, o que tem a sua dificuldade; depois limpo a palma das mãos cheias de lama a uma parede ou ao tronco duma árvore.
Ora bem, hoje pusera-me eu a olhar para as botas fulvas dum oficial de cavalaria que vinha a sair do quartel. Ao segui-las com os olhos, vi um papel que estava caído ao lado duma poça. Julguei que o oficial, com o calcanhar, fosse enterrar o papel na lama, mas não: dum passo só, ultrapassou o papel e a poça. Aproximei-me: era uma página de papel pautado arrancada certamente dum caderno escolar. A chuva tinha-a repassado e retorcido; estava cheia de bolhas e de tumefacções, como uma mão queimada. O traço vermelho da margem desbotara, tornando-se uma humidade cor-de-rosa; em alguns sítios a tinta tinha escorrido. A parte de baixo da página estava escondida sob uma crosta de lama. Abaixei-me; já sentia o prazer de mexer naquela massa tenra e fresca que me rolaria entre os dedos em bolinhas cinzentas... Não pude.
Fiquei curvado um segundo; ainda li: «Ditado – O Mocho Branco»; depois endireitei-me, de braços caídos. Já não sou livre, já não posso fazer o que quero.
[…]
Jean-Paul Sartre (1976). A Náusea. (António Coimbra Martins, Trad.). Mem Martins: Publicações Europa-América. pp.18-19.
"Sempre pensei que era triste as pessoas tentarem mudar a sua aparência, fazendo uma operação plástica ao rosto ou aos olhos para tentar apagar as rugas. Como se fossem algo de que ter vergonha. Lembro-me da primeira vez que notei rugas nos cantos dos olhos e de como fiquei espantada. Pus-me em frente do espelho e fiz todas as expressões, alegre, triste, zangada, para tentar ver onde as tinha obtido. E era do riso - prosseguiu. - Provinham do riso. E calculei que as obtivera ao longo de muitos momentos felizes. Pertenciam-me."
Andrew Mark (2005). Começar de Novo (7º ed.). Lisboa: Editorial Presença. p. 124.
O António tornara-se a minha vida. Parecia que nos conhecíamos desde sempre. Que tínhamos sido feitos um para o outro. Vivíamos num estado de namoro permanente, como nunca tivera com ninguém. Ele era um homem maravilhoso. Um homem a sério: protector, generoso, divertido, inteligente, bom conversador. Às vezes até ficava a pensar se era mesmo real. Ficava a pensar que um destes dias ainda lhe descobria um defeito. Tipo: uma verruga no pé! Estou a brincar. Essa é a velha mentalidade muito portuguesa da qual eu quero distância: procurar defeitos, achar que alguma coisa tem de estar mal para podermos sofrer, lá no nosso caminho.
Luísa Jeremias (2011). Preciso de ti. Lisboa: Esfera dos Livros. pp. 320-321.
O sofá é fofo e cómodo, porém um pouco estreito para dois adultos. Embora um e outro se encostem às extremidades, Grace e James quase se tocam. Um dos dois cadeirões antigos que ladeiam o sofá prometia maior liberdade de movimentos mas nem o visitante nem a dona da casa se deixaram tentar. Aguardam, lado a lado e próximos, que Antony apareça. Antecedendo a intervenção do convidado, o CTAV mostra a exposição Jóias da Monarquia, insistindo em grandes planos do lugar onde se encontrava a coroa de Matilde antes do audacioso golpe. Nestes tempos novos e insensatos há televisões que costumam focar assim, e com deleite, as marcas de sangue por acidentes e crimes com faca ou bala.
Mário Zambujal (2011). Uma noite não são dias. Lisboa: Editora
Planeta. p. 81. Publicado pela primeira vez em 2009.
Ladies and Gentlemen of the class of '99... wear sunscreen.
If I could offer you only one tip for the future, sunscreen would be IT.
The long term benefits of sunscreen have been proved by scientists whereas the rest of my advice has no basis more reliable than my own meandering experience.
I will dispense this advice now.
Enjoy the power and beauty of your youth. Never mind. You will not understand the power and beauty of your youth until they have faded. But trust me, in 20 years you'll look back at photos of yourself and recall in a way you can't grasp now how much possibility lay before you and how fabulous you really looked.
You are NOT as fat as you imagine.
Don't worry about the future; or worry, but know that worrying is as effective as trying to solve an algebra equation by chewing bubblegum. The real troubles in your life are apt to be things that never crossed your worried mind; the kind that blindside you at 4pm on some idle Tuesday.
Do one thing every day that scares you.
Sing.
Don't be reckless with other people's hearts, don't put up with people who are reckless with yours.
Floss.
Don't waste your time on jealousy; sometimes you're ahead, sometimes you're behind. The race is long, and in the end, it's only with yourself.
Remember compliments you receive, forget the insults; if you succeed in doing this, tell me how.
Keep your old love letters, throw away your old bank statements.
Stretch.
Don't feel guilty if you don't know what you want to do with your life. The most interesting people I know didn't know at 22 what they wanted to do with their lives, some of the most interesting 40 year olds I know still don't.
Get plenty of calcium.
Be kind to your knees, you'll miss them when they're gone.
Maybe you'll marry, maybe you won't, maybe you'll have children, maybe you won't, maybe you'll divorce at 40, maybe you'll dance the funky chicken on your 75th wedding anniversary. Whatever you do, don't congratulate yourself too much or berate yourself, either. Your choices are half chance, so are everybody else's. Enjoy your body, use it every way you can. Don't be afraid of it, or what other people think of it, it's the greatest instrument you'll ever own.
Dance. Even if you have nowhere to do it but in your own living room.
Read the directions, even if you don't follow them.
Do NOT read beauty magazines, they will only make you feel ugly.
Get to know your parents, you never know when they'll be gone for good.
Be nice to your siblings; they are your best link to your past and the people most likely to stick with you in the future.
Understand that friends come and go, but for the precious few you should hold on. Work hard to bridge the gaps in geography in lifestyle because the older you get, the more you need the people you knew when you were young.
Live in New York City once, but leave before it makes you hard; live in Northern California once, but leave before it makes you soft.
Travel.
Accept certain inalienable truths, prices will rise, politicians will philander, you too will get old, and when you do you'll fantasize that when you were young prices were reasonable, politicians were noble and children respected their elders.
Respect your elders.
Don't expect anyone else to support you. Maybe you have a trust fund, maybe you'll have a wealthy spouse; but you never know when either one might run out.
Don't mess too much with your hair, or by the time you're 40, it will look 85.
Be careful whose advice you buy, but, be patient with those who supply it. Advice is a form of nostalgia, dispensing it is a way of fishing the past from the disposal, wiping it off, painting over the ugly parts and recycling it for more than it's worth.
Overworked? Not enough time for yourself? Stressed? Hurried? Always behind? Always letting people down or cancelling things because you can´t achieve all you wanted? Everyone has 168 hours every week, yet some will always feel over-pressured, coerced, struggling against time, and others will always get things done calmly, in time, with time. So, crucially, how do you change from being one of the first to one of the second?
The late twentieth century which has spawned such unkind attitudes to work, has also come up with some remedies – Personal Time Managers – purveyors of sage advice. Some of their best is the simplest; don’t aim to do so much that you constantly castigate yourself for failure. Enjoy what you have done, rather than punish yourself for what you haven’t. Things that can trip you up include a lack of sleep, disorganized work places and an inability to focus on one thing at a time, as well as, obviously, a workload simply too great for anyone to handle.
Time managers suggest writing achievable lists of things-to-do, with very big items broken down into smaller pieces which can be done in a few hours. Don’t, don’t, don’t schedule all your time as grey, grey work-time. Schedule fun. Plan exercise. Give yourself time for pleasure and for ordinary living things. Rank your to-do list by importance, 1, 2, 3, says one time manager. And then, he adds, every now and then just cross off all the threes. Don’t promise to do anything unless you can really do it, because this hurts your promisee and snags you up in guilt. Be strategic in planning work, make goals, but be prepared to vary them. Accept the blacklog of things-that-have-yet-not-been-done. It’s normal. Don’t let it be a source of stress, but an indicator of whether you’re taking on too much. Have just a few hours every day which are inviolate – no phone, no fax, no visits – and steam ahead with heavily-concentrated work then. Schedule working hours, not all hours of day and night are interchangeable, and what one can do in one hour in the morning might take four hours at night.
In short, be nice to yourself, and remember what the anonymous author of The Cloud of the Unknowing in 1370 wrote with limpid simplicity: ‘there is nothing more precious than time. Time is made for man, not man for time.’ And remember, in this world of ruthless efficiency, that ninety-five per cent of what a butterfly does is inefficient. (Allegedly.)
Jay Griffiths: Pip Pip. A Sideways Look at Time. London: Flamingo, 1999: pp.169, 170.
Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma família em que havia um pai, uma mãe, um avô que era o pai do pai e aquela já mencionada criança de oito anos, um rapazinho. Ora sucedia que o avô já tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mãos e deixava cair a comida da boca quando estavam à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o pobre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha ou a deixar cair comida ao chão, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço, ao jantar e à ceia. Estavam as coisas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai, A partir de hoje passará a comer daqui, senta-se na soleira da porta porque é mais fácil de limpar e assim já a sua nora não terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos. E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sozinho na soleira da porta, levando a comida à boca conforme lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte da outra metade escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que lhe descia finalmente pelo que o vulgo chama o canal da sopa. Ao neto parecia não lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e a mãe, e continuava a comer como se não tivesse nada que ver com o caso. Até que uma tarde, ao regressar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha um pedaço de madeira e julgou que, como era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo por suas próprias mãos. No dia seguinte, porém, deu-se conta de que não se tratava de um carrinho, pelo menos não se via sítio onde se lhe pudessem encaixar umas rodas, e então perguntou, Que estás a fazer. O rapaz fingiu que não tinha ouvido e continuou a escavar na madeira com a ponta da navalha, isto passou-se no tempo em que os pais eram menos assustadiços e não corriam a tirar das mãos dos filhos um instrumento de tanta utilidade para a fabricação de brinquedos. Não ouviste, que estás a fazer com esse pau, tomou o pai a perguntar, e o filho, sem levantar a vista da operação, respondeu, Estou a fazer uma tigela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta, como fizeram ao avô.
José Saramago (2005). As Intermitências da Morte. Lisboa: Caminho. pp. 85-87.
Meditei hoje, num intervalo de sentir, na forma de prosa de que uso. Em verdade, como escrevo? Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma norma. E certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso, porém, não sou diferente dos outros.
Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistema de estilo assenta em dois princípios, e imediatamente, e à boa maneira dos bons clássicos, erijo esses dois princípios em fundamentos gerais de todo estilo: dizer o que se sente exactamente como se sente - claramente, se é claro; obscuramente, se é obscuro; confusamente, se é confuso -; compreender que a gramática é um instrumento, e não uma lei.
Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela, "Aquela rapariga parece um rapaz". Um outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela, "Aquela rapariga é um rapaz". Outro ainda, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afecto pela concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela, "Aquele rapaz". Eu direi, "Aquela rapaz", violando a mais elementar das regras da gramática, que manda que haja concordância de género, como de número, entre a voz substantiva e a adjectiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.
A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. Se quiser dizer que existo, direi "Sou". Se quiser dizer que existo como alma separada, direi "Sou eu". Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei-de empregar o verbo "ser" senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi "Sou-me". Terei dito uma filosofia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer nada em quarenta frases? Que mais se pode exigir da filosofia e da dicção?
Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões. Conta-se de Sigismundo, Rei de Roma, que tendo, num discurso público, cometido um erro de gramática, respondeu a quem dele lhe falou, "Sou Rei de Roma, e acima da gramática". E a história narra que ficou sendo conhecido nela como Sigismundo "super-grammaticam". Maravilhoso símbolo! Cada homem que sabe dizer o que diz é, em seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e a alma é ser-se.
Fernando Pessoa (2000). Livro do Desassossego. Linda-a-Velha: Biblioteca Visão, pp. 63-64.
Uma vez, entrei em verona para não entrar em veneza. Entre o vê de verona e o vê de veneza optei por ver verona. Gostei da coincidência das consoantes na janela de julieta; e sei que em veneza não ouviria o vento da vingança, nem provaria o veneno de uma volúpia que só em verona se desvanece com a vida. Não há canais em verona, como em veneza; nem há janelas em veneza, como em verona; mas Julieta espreita a rua, da janela que é sua, e se ninguém diz a senha que só ela sabe, agita o lenço molhado pelas lágrimas que as nuvens bebem, levando-as de verona até veneza, onde a chuva as deita nos canais.
Nuno Júdice (2001). “A Varanda de Julieta”. In: Pedro, Lembrando Inês. Lisboa: Dom Quixote.
Esta é, como de início adverti, a perspectiva particular de um particular escritor de livros, alguns deles provavelmente “para” crianças, ou também “para” crianças (porque sei lá para quem os livros que escrevo são!). Nada é decerto tão perigoso do que a certeza de que se tem razão, e estou convicto de que outros escritores com experiências literárias substancialmente diferentes hão-de dizer, sobre a matéria, coisas do mesmo modo substancialmente diferentes. Por outro lado, a verdade é que a perspectiva literária sobre a literatura não é a única possível. No caso da literatura “para” crianças, a “língua que os livros falam” pode ser, por exemplo, e durante séculos foi [e ainda hoje muitas vezes é], principalmente a da educação – moral, religiosa, ou outra – ou seja, a da razão.
Mas eu não sou um educador, e a única forma de educação que sou capaz de vislumbrar na literatura é a educação para a liberdade. Não a liberdade política, ou as diferentes liberdades em que a liberdade política pode analisar-se, mas a liberté libre (e talvez se possa igualmente dizer liberte livre) de Rimbaud.
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Durante muito tempo, os temas da literatura “para” crianças eram limitados, em virtude, principalmente, da sua assumida função “educativa” e das próprias concepções dominantes de “educação”.
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A importância da literatura para a criança, como para o adulto, é que ela é um “organizador fundamental”, que protege a vida contra a automatização e contra a “tragédia da rotina” que ameaça a afectividade e as relações. No caso da criança, a literatura pode ajudá-la a transformar-se naquilo que ela mais profundamente é. Seguindo ainda uma vez a lição de Jacobson sobre poesia, a criança que lê torna-se diferente, brinca diferentemente, relaciona-se diferentemente com o mundo e consigo mesma, ama diferentemente, exprime-se e comove-se diferentemente. Porque a literatura, provavelmente mais e mais profundamente do que a “educação”, transforma.
O momento da leitura [mesmo quando alguém lê para nós, ou quando lemos em conjunto] é um momento de solidão e de liberdade. Ler é decifrar-se, ler-se a si mesmo naquilo que se lê. A responsabilidade do escritor vem principalmente daí. Steiner cita um salmo que fala de “pôr a mão sobre o ser essencial do outro”. É algo parecido que se passa no mágico e intenso momento de partilha de identidades em que a escrita se encontra com a leitura. Nesse momento, todo o leitor é sempre uma criança, tão vulnerável quanto o próprio escritor, com que se confunde, pois do mesmo modo que o escritor é um leitor lendo-se por escrito, também cada leitor [ou, talvez melhor, cada leitura] reescreve o que lê e se inscreve no que lê.
A literatura, diz Pound, é linguagem carregada de sentido; de sentidos, digo eu, pois que uma obra literária é um espaço aberto e evasivo de sentidos, de todos os sentidos que as palavras fazem e não fazem e dos sentidos que o próprio sentido umas vezes faz e outras vezes não faz.
Por isso é que, do ponto de vista de um escritor [e também de um leitor] de literatura, a língua que os livros falam, e particularmente a língua que os livros de literatura “para” crianças falam, é fundamentalmente a da liberdade, uma língua multímoda em cujo interior tudo é possível, o dito, o não dito, o interdito e o entredito. Como nos jogos infantis de faz de conta.
Talvez a infância seja uma espécie de ficção que contamos a nós mesmos. Às vezes sob a forma de literatura “para” crianças. E, quem sabe?, “dirigindo-a” [mesmo se não nos apercebemos disso] a nós mesmos, ou àquilo que, em nós mesmos, profundamente somos, mais talvez do que às próprias crianças.
Manuel António Pina (2010). “A Língua Que os Livros “Para” Crianças Falam”. In Duarte, Rita Taborda (coord.). XVIII Encontro de Literatura para Crianças Palavra de Trapos. A Língua que os Livros Falam. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. pp. 20-23