quarta-feira, 9 de abril de 2014

José Luís Peixoto

Prefiro dizer o título no fim

Deitado sobre a colcha da cama do meu quarto, eu tinha quinze, dezasseis anos e sabia a importância do livro que estava a ler.
Nas aulas de português da escola secundária, o professor era um padre que chegava sempre composto e penteado, cabelo moldado com brilhantina. Tinha um anel no dedo mindinho e lia passagens desse livro com uma solenidade que me deixava a adivinhar o eco das suas missas. Depois, quando falava sobre o livro, entusiasmava-se e emocionava-se ao ponto de fechar os olhos. A sinceridade desses sentimentos era evidente e enchia a sala. Sem sair da sua postura, deixava escapar um sorriso discreto que cativava.
Li esse livro durante um verão. Julho, agosto, setembro. A seu tempo, anos antes, tinha sido lido pelas minhas irmãs. Habituara-me a ver a sua lombada numa prateleira do quarto delas e a saber que me esperava.
Eu passava esses verões a ajudar na carpintaria do meu pai. Sob o cheiro da madeira, o interior das árvores, fazia toda a espécie de pequenos trabalhos enquanto o meu pai e os outros homens montavam portas e janelas.
Essas horas eram diferentes porque eram muito lentas. As manhãs e as tardes pareciam intermináveis. Os homens estendiam os assobios pelo ar. Essas melodias atravessavam nuvens da serradura fina que se colava ao suor, atravessavam a luz que entrava pelas janelas do pátio, esbarravam no barulho ensurdecedor das máquinas e, depois, regressavam à sua liberdade virtuosa, com a pontuação de marteladas.
Quando chegava a casa, as roupas lavadas depois do banho eram um alívio para a pele. Sentia o descanso até nos pensamentos. Era nesses fins de tarde que me deitava sobre a colcha da cama do meu quarto e lia o livro. Pela janela, chegava o som dos sinos da vila e a claridade branda que o céu refletia, claridade rasa sobre a terra da tapada, a recortar as copas das oliveiras.
Então, diariamente, voltava àquele mundo. Tão diferente do meu e, no entanto, a puxar-me para o seu interior e, afinal, a pertencer-me também. O livro não me pesava nas mãos: as capas forradas a plástico e as anotações à margem, feitas a lápis, com a caligrafia da minha irmã Alzira.
Li a última página em setembro, já tinha feito dezasseis anos e, logo depois da última palavra, caí no silêncio. Nesses dias, falava menos ao carregar aros de portas. Ao serão, enquanto jogava bilhar na Casa do Povo, ficava mais calado do que o habitual, ouvia-se mais o barulho das bolas a baterem umas nas outras.
Quando a escola começou, ainda me adaptava a ser um ano mais velho, mas sentia-me preparado para o décimo primeiro ano. Na aula de português, quando o professor perguntou quem tinha lido o livro, levantei o braço o mais alto que consegui, como se crescesse ao fazê-lo. Ao meu lado, também de braço no ar, estavam outros que, sabia bem, não o tinham lido.
Começámos por Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano. O professor falava como se o seu rosto refletisse a devastação do campo de batalha. Lembro-me bem do modo longo, articulado, como pronunciava "Hermengarda". Depois, atravessámos o inverno com Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. A seguir, por fim, o título do livro surgiu nos sumários que o professor ditava no início da aula.
O livro. Ninguém notava, havia muitas outras coisas em que reparar, mas as palavras do professor encontravam um caminho até ao meu centro. Quando o professor escrevia algo no quadro, fazia-o com uma caligrafia muito certa. Cada frase, escrita ou falada, lançava luz sobre a minha memória do livro. Só o toque de saída interrompia essa homilia. Entre o som de vozes e cadeiras arrastadas, olhava para o professor a arrumar a pasta.
Um dia, quase no fim do segundo período, o professor não veio. Passou uma semana e continuou sem vir. Então, soubemos que estava doente. Passaram as férias da Páscoa e continuámos sem aulas de português. A meio do terceiro período, soubemos que o professor tinha morrido. Ficámos com a nota do segundo período e não chegámos a fazer qualquer teste com matéria de Os Maias, o livro que eu tinha lido no verão anterior.
Deitado sobre a colcha da cama do meu quarto, eu tinha quinze, dezasseis anos e sabia que aquele livro estava a mudar a minha vida para sempre.

José Luís Peixoto (2013). «Prefiro dizer o título no fim». Visão, 13 de junho. Disponível em: http://visao.sapo.pt/jose-luis-peixoto=s25419 (acedido a 8 de abril de 2014).

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