O VENTO, A ROUPA
Uma janela, mas vista de dentro de casa. Lá fora, meninos brincam debaixo
de pedaços de roupa que devem estar a secar. São pedaços de roupa estranhos,
pois não os reconhecemos, não conseguimos associar aqueles pedaços de roupa a
partes concretas de um corpo humano normal. Não se percebem calças para duas
pernas, nem camisas com duas mangas, nem sequer a roupa interior, as meias,
nada aparece ali que se possa identificar. É uma roupa informe e quase nos
assustamos ao pensar em quem vestirá aquelas roupas, que não parecem feitas
para corpos com as formas humanas. E por momentos pensamos que quem vive
naquela casa são seres sem pernas, sem braços, sem partes vitais do corpo,
seres que sobraram de algum sítio. Mas depois vemos que não e não e não, são
pedaços de roupa estranhos sim, mas é o vento que os empurra, que os faz dobrar
sobre si próprios, e aquilo que nos parecia roupa informe, roupa de loucos ou
de estropiados, vemos agora, por breves instantes, quando os caprichos do vento
o permitem, vemos que são peças de roupa normais que o vento torna informes e
defeituosas.
Mas o vento tem razão, e o vento faz coisas que nos anunciam momentos
trágicos, muito antes de a nossa inteligência perceber. E por isso é que, graças
ao esperto do vento, não nos choca tanto o aparecimento daquele homem
estropiado, que vem ― com poucos membros e com muita ajuda ― mostrar que o
vento sabe bem o que faz, que não é assim tão caótico e burro.
Gonçalo M. Tavares (2011). «O Vento, A Roupa».
In: Short Movies. Alfragide: Caminho,
pp. 53-54.
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