JORGE MARMELO
MÁQUINAS DE SONHAR
Quem tenha lido o D. Quixote de la Mancha, o
engenhoso romance de Miguel de Cervantes, recordará que, após o primeiro
regresso a casa do cavaleiro da triste figura, bastante amachucado por sinal,
um padre e um barbeiro, de conluio com a governanta, se dedicam a deitar fogo à
biblioteca do fidalgo. Convencidos de que os romances de cavalaria tinham sido
os responsáveis pelo desatino que acometeu Quixote e o levou à insana aventura
de ser cavaleiro andante pelas terras de Espanha, barbeiro e cura chegam ao
ponto de emparedar a biblioteca, para que não ficasse rasto nenhum daquela
máquina de sonhar e imaginar que, pelos vistos, são os romances impressos.
Queimar livros é, aliás,
uma prática quase tão antiga como a própria existência dos livros. A Biblioteca
de Alexandria, após séculos de incidentes menores, acabou reduzida a cinzas no
ano de 391, às ordens de um bispo cujo nome não quero recordar, o qual fez
questão de guardar para si o prestígio de inaugurar a era de intolerância e
trevas que reinaria pelos séculos seguintes.
Durante a época medieval, a
Inquisição dedicou especial atenção à queima dos livros proibidos e tidos por
pecaminosos. Queimaram-se uma boa quantidade deles, quase sempre reunidos,
segundo ficou escrito, em canastras cheias para os autos-de-fé em que, ainda
assim, a atracção principal era o sacrifício às chamas de gente viva que, por
exemplo, praticasse o suspeitíssimo hábito da higiene pessoal ou atentasse
contra Deus através de palavras, actos ou omissões.
Na Alemanha de 1933, os
nazis empenharam-se igualmente na queima de livros, juntando aqueles que
tivessem sido escritos por autores inconvenientes e chegando-lhes o fogo
purificador em grandes pilhas armadas nas praças públicas das cidades.
Impunha-se, afinal, eliminar os elementos estranhos que pudessem "alienar
a cultura alemã". E daí ao Holocausto foi, como se sabe, um ápice.
De volta à literatura, Ray
Bradbury imaginou também, em Fahrenheit
451, uma sociedade do futuro, extremamente bem comportada (como alguns
políticos gostam), na qual todos os livros estariam proibidos - e, com eles, a
opinião individual e o pensamento crítico. Para garantir o bem-estar da nação,
um corpo de bombeiros dedica-se exclusivamente à queima dos perversos volumes
impressos, à temperatura de 451 graus Fahrenheit. É uma parábola eficaz, mas
peca por falta de ambição ou de espírito visionário.
Ray Bradbury não imaginou,
por exemplo, que o futuro, seja lá o que venha a ser, talvez não conte sequer
com livros impressos, mas antes com dispositivos digitais de leitura. Nessas
maquinetas se poderão ler ficheiros adquiridos virtualmente, os quais, pelos
vistos, terão morada numa espécie de nuvem de éter (cloud), a partir da
qual podem ser descarregados. Daí que, correndo-lhes as coisas de feição, os
inquisidores do porvir já não precisarão de recorrer ao fogo. Basta-lhes soprar
a nuvem de liberdade, loucura e sonho que, eventualmente, ainda ajude o Homem a
pensar pela sua cabeça.
Fonte: Jorge Marmelo (2011). «Máquinas de Sonhar». Público. Disponível em: http://www.publico.pt/opiniao/jornal/maquinas-de-sonhar-22673043
(consultado a 28 de abril de 2014).
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