quarta-feira, 3 de outubro de 2012


Tragicomédia dos dias tristes

7 meses em Havana contados em 7 dias

Raquel Ribeiro

[excerto]

1. Cheguei e tudo cheirava como dantes: rum e gasolina confundindo-se no meu corpo. Como no filme de Benicio del Toro, também sou yuma (estrangeira): ei, ladi, uére you from? O assédio é insuportável e lembra-te que não pertences, o teu sotaque é estranho (“Canadá? Itália? Brasil?), que és privilegiada, branca, burguesa, chegas de uma qualquer esquina do império para ver o socialismo utópico em acção. Depois manda-los dar uma volta num bom cubano callejero, coisas que não ficam bem a uma senhora (asere, pinga, cojones, desgracia’o, pendejo): “Ah, mas afinal és cubana!”

Por que é que é tão difícil pertencer aqui, mesmo quando nos oferecemos, assim, abertos, empenhando a beleza que ainda nos resta? Por que é que esta terra nos dá e nos tira? Por que é que esta cidade custa tanto a amar?

2. Desço a 23, bamboleando-me em direcção ao mar e reencontro o sorriso do abacateiro que se lembra de mim e me pergunta pelo Ronaldo, ou da senhora do café na Universidade a quem peço um pan com tortilla pelo mesmo preço de há 7 anos (não há inflação). Na União de Escritores, amigos comentam: “Ouvi dizer que já estavas cá”, e assim se percebe que a novidade acabada de chegar da outra margem do Atlântico é quase um rumor pela cidade.

Raquelita!, como andas, mi chiquitica?” Deixo de ser Raquel para passar a ser mami, mi vida, mi amor, muchacha, raqueliña, raqué, e assumo essa identidade (ainda não-cubana), outra, híbrida, quase-hispânica, galeguita. Convidam-me para eventos. Vamos ao teatro! Dizem “nós” como quem diz “cubano”. E sei que pertenço aqui.

[…]

7. Domingo. Como os habaneros vamos ao malecón. A A. fotografou um velho e o mar e um cão. O cão, de frente para o mar, contemplava as ondas, triste. O velho, de costas para o mar, mirava as estrangeiras nas portas giratórias do hotel. E o mar sempre à espera que alguém o ame. Sentadas sobre o muro, tomamos bucaneros fresquinhas e esperamos pelos vendedores da amendoins torrados e pelos guitarristas de lânguidas mexicanadas: ladi, uére you from?

Havana é cacofonia ou morte. Viras costas à cidade e os miúdos mergulham junto às rochas, os pescadores de esperança na linha, a América a 90 milhas e uma vez mais pensas que podes afinal pertencer, como se esta cidade só te soubesse dar isso: a impossibilidade de compreender que se pode ter tudo, mesmo quando não se quer; a impotência de saber que tudo o que se julga que se consegue nem sempre se tem; e o júbilo de compreender que mesmo não se tendo nada, é-se. Assim: é-se. E ser-se é tudo.

Público, 14 de Setembro de 2012, p. 26.

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