quarta-feira, 16 de maio de 2012

“O Corvo”
Raul Brandão (in As Ilhas desconhecidas)
Ainda de noite, seguimos a caminho do Corvo, com o mar chocalhado, como se diz nos Açores. Este canal é amargo. Às cinco horas da manhã do dia 17 estamos à vista de duas manchas azuladas, Flores e Corvo, sob um céu velado e em águas revoltas. Uma hora depois distingo perfeitamente o cone de bronze truncado, com escorrências de verdete no alto. Não se vê uma árvore naquele enorme pedregulho batido pelas vagas. É com apreensão que desembarco no sítio mais pobre e mais isolado do mundo.
(…)
17 de Junho [de 1924]
Pedra negra, areia negra e um mar esverdeado, que de Inverno assalta, vagalhão atrás de vagalhão, este grande rochedo a pique, com fragas caídas lá no fundo e que as águas corroem num ruído incessante de tragédia. Céu muito baixo, nuvens esbranquiçadas. Braveza, solidão e negrume.
Uma única povoação de meia dúzia de ruelas fétidas, lajeadas do burgo, algumas com meio metro de largura, onde se fabrica o estrume. A igreja, um largozinho, e, logo por trás do povoado, o monte severo, erguido em socalcos e caído a um lado. A mesma labareda devorou tudo isto: os interiores, as paredes, os telhados. Velhas de lenço e, sobre o lenço, o xale escuro, homens de barrete, descalços e de pau na mão. De quando em quando, duma pequena janela, espreita a cabeça duma mulher ou o focinho duma vaca. As casas denegridas, onde vive o homem e o boi, tresandam a leite e a corte. Os rapazes cheiram a gado. À volta dos casebres meia dúzia de leiras de centeio e trigo divididas por muros de pedra solta. E tudo tão humilde, tão feio, tão só, que me mete medo. Um penedo e vento na solidão tremenda do Atlântico.
Não há mercado nem estalagem. Não há médico, nem botica, nem cadeia. As portas não têm chave. Não há ricos nem há pobres, e neste mundo isolado tanto faz ser rico como pobre: o homem mais rico do Corvo anda descalço como os outros e lavra a terra com os filhos. O pedreiro é pedreiro e lavrador, o ferreiro é ferreiro e lavrador, e morre à fome quem não fabrica os currais por suas próprias mãos. Ninguém se sujeita a servir – mas todos os vizinhos se ajudam: quando toca o sino a rebate, o povo acode a destelhar a casa, a construir a corte ou a levantar o socalco.
(…)
20 de Junho
            Vou-me habituando a ficar com a porta aberta. Na primeira noite tive medo. Agora durmo de um sono num colchão de palha milha, com a janela escancarada, por onde entra o jorro que sabe a mar e a que se mistura o cheiro bravo do monte. Também vou com os pastores e os lavradores sentar-me no Outeiro, onde está a Câmara, o Espírito Santo e a cadeia vazia (agora mora lá uma vaca), e ouço-os de roda nas banquetas tomando resoluções sobre a lavoura e a terra. Aí se juntam de manhã antes de partirem para o Fojo ou à tarde quando recolhem. Sinto-me pequeno ao pé do António da Ana, de barba curta e grisalha, do Santareno, que parece um apóstolo, do Joaquim Valadão, do Manuel Tomás, do sapateiro a arrastar a perna, dos velhos baleeiros de pêra e barrete às riscas na cabeça, todos duma grave compostura – fisionomias de santos ou pedintes, onde há qualquer coisa de empedrado.
(…)
            Aqui acabam as palavras, aqui acaba o mundo que conheço; aqui neste tremendo isolamento onde a vida artificial está reduzida ao mínimo só as coisas eternas perduram. Não se pode fugir à monotonia da existência, à solidão que nos cerca, à sólida arquitectura dos montes que apertam e esmagam. Sempre presentes o plano revolto e amargo das ondas e a povoação isolada e denegrida. Passam-se meses sem notícias do mundo, e com as Flores comunica-se com fogaréus que se acendem nos altos, porque o canal é largo e tão perigoso que arroja de Inverno os peixes mortos à praia. É aqui que o Tempo assume proporções extraordinárias. Vejo diante de mim a figura monstruosa, que suprimimos da existência fútil, arredando-a e esquecendo-a, o que no Corvo preside a todos os actos da vida. O Corvo não tem peso no mundo, mas nunca senti como aqui a realidade e o peso do Tempo. Sob o seu domínio todos caminham, repetindo os mesmos gestos e as mesmas palavras, e arrastando o mesmo fardo sem levantarem a cabeça nem desatarem aos gritos.
            Estas figuras despidas e trágicas são tremendas como problemas insolúveis. Erguem-se diante de mim, a arredo tudo, esqueço tudo para os interrogar. Não que eles me saibam responder – eu é que hei-de responder a mim próprio, porque foi isto que me trouxe ao Corvo.
Raul Brandão (s/d). As Ilhas desconhecidas. Lisboa: Perspectivas e Realidades. pp. 25-35.

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