quarta-feira, 29 de junho de 2011

Rui Nunes, "partida:"

partida:

procura. Um gesto procura. A luz.
Nas leiras, a terra endureceu, esmagou as raízes
e o ar tornou quebradiços os troncos das faias.
No cais, a criança estende os braços para o vento. E corre :
a memória de outros passos é um animal que não pode morrer.
Ela não sabe que a sua corrida é inútil,
que não há um fim para a morte:
como um lobo paciente, o cais
percorre o silêncio interminável dos predadores
:
pontes atravessam linhas. E perdem-se.
Todos os pontos são de fuga. Todas as pontes.
Vozes e vultos confundem-se.
Junto à linha férrea, anda uma criança.
Deixou para trás um espião,
uma casa desabitada, com a sua transparência.
E, aflita, pergunta.
Alguém responde.
Alguém.
E reata-se o sentido mais frágil:
qualquer voz tem a mudez tão perto.
:
rasgão a rasgão, o caminho abre-se.
Mas que sabe ela de cada novo passo?
Como a libélula ressequida pelo sol,
a palavra inicial tornou-se um invólucro
que só lhe devolve o medo.
Pai, pai: grita. Para esgotar todos os nomes da morte.
Pai, porque me abandonaste?
:
afasta-se, por uma noite sem Deus.
Ansiosa, procura
entre coisas, uma pausa, entre bichos diligentes,
o sentido de uma fuga, uma raiva que dê
à pedra a sua pedra,
ao caminho o seu caminho,
e destrua a película que encerra
o eco de um desmoronamento, a ruína
sob a indiferença irradiante.

Rui Nunes (2011). A Mão do Oleiro. Lisboa: Relógio d’Água Editores. pp.8-9.

Sem comentários:

Enviar um comentário