Na verdade, o deserto não existe: se tudo à sua volta deixa de existir e de ter sentido, só resta o nada. E o nada é o nada: conforme se olha, é a ausência de tudo, ou, pelo contrário, o absoluto. Não há cidades, não há mar, não há rios, não há sequer árvores ou animais. Não há música, nem ruído, nem som algum, excepto o do vento de areia quando se vai levantando aos poucos – e esse é assustador. Será assim a morte, também, Cláudia?
Quando um de nós ficava parado a contemplar o deserto, o outro não deveria dizer nada. Tudo o que se pudesse dizer, naquelas alturas, ali, em frente ao nada ou ao absoluto, seria tão inútil que só poderia vir de uma alma fútil. Tudo o que se diz de desnecessário é estúpido, é um sinal destes tempos estúpidos em que falamos mais do que entendemos. No deserto, não há muito a dizer: o olhar chega e impõe o silêncio. Mas, naqueles dias, eu estava sempre com pressa. Alguém tinha de estar sempre com pressa e coubera-me a mim, por função. Só não tinha pressa à noite, depois de montado o acampamento, cozinhado o jantar, revisto e arrumado o jipe e de ter passado para um caderno as notas do trabalho do dia e quando, enfim, me sentava com os outros à lareira a olhar as estrelas do Sahara.
Um dia, porém, depois de mais uma paragem para colher imagens, ao regressar ao jipe vi que tinhas ficado ao lado da pista, a olhar em frente, como se te tivesses desligado de tudo. Ia gritar-te, buzinar-te, quando qualquer coisa na maneira como tu estavas em pé a olhar o deserto, qualquer coisa na maneira como tinhas as mãos enfiadas nos bolsos, a cabeça ligeiramente inclinada de lado, o cabelo varrido pelo vento, me fez ficar quieto ao volante. E fiquei assim a observar-te até que tu te virasses e visses que estava à tua espera. Aprendi que é preciso dar tempo aos outros para olharem. Se não fosse para isso, porque teríamos nós vindo ao deserto?
Muitos anos mais tarde, neste ano em que escrevo esta história, estava num fim do mundo, junto ao rio Guadiana, num sítio tão vazio quanto deserto, lá em baixo, no Alentejo. Estava a recuperar o fôlego de uma longa caminhada e tinha-me sentado numa pedra a olhar o rio que corria no fundo do desfiladeiro. Creio que estaria como tu estavas naquele dia, o mesmo olhar perplexo perante a vastidão daquele cenário: há alturas em que a beleza é tão devastadora que magoa. Devia haver qualquer coisa na forma como eu olhava aquela paisagem, todo aquele despojamento humano, que fez com que o alentejano que estava comigo, e que antes tinha sido pastor naqueles vales, comentasse:
– A terra pertence ao dono, mas a paisagem pertence a quem a sabe olhar.
E era assim connosco naqueles dias, também. Éramos donos do que víamos: até onde o olhar alcançava, era tudo nosso. E tínhamos um deserto inteiro para olhar.
Desenho de Charles de Foucauld (1856-1916)
Miguel Sousa Tavares (2009). No teu deserto. Alfragide: Oficina do Livro. pp. 49-51
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