terça-feira, 26 de julho de 2011

Excerto do conto “O último amor do príncipe Genghi”, de Marguerite Yourcenar

Quando Genghi, o Resplandecente, o maior sedutor que jamais surpreendeu a Ásia, atingiu os cinquenta anos, deu-se conta de que tinha de começar a morrer. A sua segunda mulher, Murasaki, a princesa Violeta, que ele tanto amara através de tantas infidelidades contraditórias, precedera-o num desses Paraísos aonde vão os mortos que conquistaram algum mérito durante esta vida inconstante e difícil, e Genghi atormentava-se por não conseguir recordar exactamente o seu sorriso ou o esgar que esboçava antes de chorar. A sua terceira esposa, a Princesa do Palácio do Poente, enganara-o com o genro, tal como ele enganara o pai nos seus tempos de juventude com uma imperatriz adolescente. Representava-se a mesma peça no palco do mundo, mas desta vez sabia que lhe estava apenas reservado o papel de velho, e a semelhante personagem preferia a de fantasma. Por isso mesmo distribuiu os seus bens, reformou os seus servos e preparou-se para acabar os seus dias num eremitério que tivera o cuidado de mandar construir na encosta da montanha. Atravessou pela última vez a cidade, seguido apenas por dois ou três companheiros dedicados que não se resignaram a despedir-se, nele, da sua própria juventude. Não obstante a hora matinal, havia mulheres com o rosto encostado às delgadas ripas das persianas. Murmuravam em voz alta que Genghi era ainda muito belo, o que provou uma vez mais ao príncipe que chegara a hora de partir.
Levaram três dias a alcançar o eremitério, situado em pleno campo silvestre. A casita erguia-se à sombra de um bordo centenário; como era Outono, as folhas daquela bela árvore revestiam-lhe o telhado de colmo com uma coberta de oiro. A vida nesta solidão revelou-se ainda mais simples e mais dura do que nos longos exílios que na sua turbulenta juventude Genghi suportara no estrangeiro, e aquele homem requintado pôde finalmente saborear à saciedade o luxo supremo que consiste em distanciar-se de tudo. Breve se anunciaram os primeiros frios; as encostas da montanha cobriram-se de neve como as amplas pregas das vestes acolchoadas que se usam no Inverno, e o nevoeiro abafou o sol. Da aurora ao crepúsculo, à parca luz de um braseiro avaro, Genghi lia as Escrituras e achava naqueles austeros versículos certo sabor de que eram doravante falhos os mais patéticos versos de amor. Mas breve se deu conta de que estava a perder a vista, como se todas as lágrimas que vertera sobre as suas frágeis amantes lhe houvessem queimado os olhos, e teve de reconhecer que, para ele, as trevas começariam antes da morte. De quando em vez, um correio transido, chegava da capital, arrastando os pés inchados de cansaço e de frieiras, e apresentava-lhe respeitosamente mensagens de parentes ou amigos que desejavam visitá-lo uma derradeira vez neste mundo, antes dos encontros infinitos e incertos da outra vida. Mas Genghi receava inspirar aos seus hóspedes mera compaixão ou respeito, dois sentimentos a que tinha horror e aos quais preferia o esquecimento. Sacudia tristemente a cabeça, e aquele príncipe outrora famoso pelo seu talento de poeta e calígrafo mandava o carteiro de volta com uma folha em branco. Pouco a pouco, os contactos com a capital abrandaram; o ciclo das festas sazonais continuava a girar longe do príncipe, que em tempos as dirigia com um aceno do leque, e Genghi, abandonado sem pejo às tristezas da solidão, agravava sem cessar o mal que lhe afligia os olhos, pois já não se envergonhava de chorar.
(…)
Excerto do conto “O último amor do príncipe Genghi”, in Marguerite Yourcenar (1999). Contos Orientais
(3ª Ed.). (Gaëtan Martins de Oliveira, Trad.). Lisboa: Publicações Dom Quixote. pp. 65-67.

Há informação sobre Hikaru Genji, o herói desta história, e a obra Genji Monogatari, de Murassaki Shikibu (978? – 1026?), na qual Yourcenar se inspirou no seguinte endereço: http://www.culturajaponesa.com.br/htm/genjimonogatari.html

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