O que é normal e consequente que eu diga agora é o seguinte: «Devo ter adormecido…»
Isto seria o seguimento natural da história. Desta frase «devo ter adormecido» nasceria todo um enredo provável e uma erupção de acontecimentos surgiria coerentemente.
Infelizmente não adormeci. Tudo seria mais fácil.
Deixei-me para ali ficar acocorada, com os olhos semicerrados, atenta ao menor ruído muito tempo, talvez horas, nem sei bem, num estado praticamente anestesiado, em plena alteração de consciência, estado esse que, eu sabia, me conduziria à descoberta de verdades, de qualquer verdade que me fizesse compreender o sentido da vida destas mulheres. Conhecer estas mulheres, pensava eu, era conhecer a vida toda, qual foi o impulso que aqui me trouxe, donde vim, para onde vou, porque sim e porque não. Para isso, era necessário passar aqui uns dias, até talvez muitos dias, e habituar-me à ideia de viver num sítio estranho, apenas habitado durante a noite por alguém que ninguém conhece, começar a viver quando as pessoas lá fora já adormeceram e o lugar de Quintas é apenas um minúsculo pontinho de luz nesta vasta solidão do universo.
(p. 29)
A próxima a falar sou eu, uma mulher tímida. Cheguei a ter trinta anos, mas o tempo que vivi foi quase silencioso.
Este episódio da minha vida foi passado numa altura em que me casei muito apaixonada, muito apaixonada mesmo, e por essa mesma razão fui viver isoladamente, eu e o meu marido, que tinha começado a trabalhar há pouco tempo por ali perto, num local de clima violento, cheio de ventos, de brumas, de chuvadas repentinas. O Sol brilhava no Verão mas o Inverno sempre me pareceu muito mais longo aqui neste sítio do que quando eu vivia na cidade. Era um Inverno que começava nos finais de Setembro e terminava, depois de muita devastação, ventos, chuvas e cansaço, nos finais de Maio. Em Junho lá aparecia uma atmosfera morna, ouvia-se e via-se centenas, milhares de pássaros a cantar nos telhados, nos ramos das árvores, nos fios dos postes de electricidade que atravessavam o terreno da casa onde eu vivia; os javalis saíam dos seus esconderijos nos fundos verdes das matas e abeiravam-se, animados, do ribeiro. Havia outros bichos, que não vou estar agora aqui a descrever, que apareciam radiantes em todos os começos duma vida nova, no tempo da Primavera.
(P.79)
Cristina Carvalho (2011). A Casa das Auroras. Lisboa: Editora Planeta. pp. 29 e 79.
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