Vergílio Ferreira
Aparição
[excerto]
[excerto]
Subitamente à beira de um monte, um homem de pelico ergueu a mão ao carro. Eram três ou
quatro casas apinhadas num terreiro. Moura parou e reconheceu o homem:
― Você outra vez? Então o que é que há
de novo?
― Eu sabia que o senhor doutor ia ali à
dona Alzira e pus-me aqui à espera.
― Mas então o que é que há?
O homem olhou-me para ver até que ponto
eu 'podia participar do seu segredo.
― Se é preciso, eu saio ― declarei.
― Não, acho que não ― disse Moura. ― O
senhor doutor pode ouvir? ― perguntou.
― Ele também é doutor? - adiantou o
homem raiado de esperança.
― É doutor, mas não é médico. Diga lá
então.
E o homem contou uma história incrível.
Moura já a conhecia, porque fez referência a uma consulta na cidade. Mas de
nada lhe valeu, porque o homem queria contá-la outra vez desde o princípio.
Receava decerto que lhe tivesse falhado algum pormenor e que isso lhe
destruísse a esperança. Contava-a agora de novo:
― Quando foi da sementeira, o patrão
Arnaldo disse-me: «Ó Bailote, tu já não tens a mesma mão para semear.» Porque
eu, senhor doutor, tive sempre uma mão funda, assim grande, como um cocho de cortiça. Eu metia a mão ao saco
e vinha cheia de semente. Atirava-a à terra e semeava uma jeira num ar.
Conta, bom homem, conta o teu sonho
perdido. Tinhas, pois, uma boa mão de semeador bíblico. Atiravas a semente e a
vida nascia a teus pés. Eras senhor da criação e, o universo cumpria-se no teu
gesto. E, enquanto o homem falava, eu olhava-lhe a face escurecida dos séculos,
os olhos doridos da sua divindade morta. Imaginava-o outrora dominando a
planície com a sua mão poderosa. A terra abria-se à sua passagem como à passagem
de um deus. A terra conhecia-o seu irmão como à chuva e ao sol, identificado à
sua força germinadora.
― Agora o patrão diz que eu já não tenho
mão.
E mostrava a sua desgraçada mão,
envelhecida, carbonizada de anos e soalheira. Moura olhou-me e sorriu-me numa
cumplicidade.
― Olhe. Faça ginástica aos dedos. Assim.
E exemplificava. De olhos escorraçados,
o homem lamentou-se:
― Tenho feito, senhor doutor. Mas o
patrão Arnaldo diz que eu já não tenho mão. Veja, senhor doutor, então isto
não será ainda uma mão de homem?
E tentava cavá-la fundo, com os dedos
gretados no ar.
― Então que quer que eu lhe faça?
― Dê-me um remédio, senhor doutor. Um
remédio que me ponha a mão como a tinha. Assim grande, assim funda, assim,
assim...
E moldava no ar a capacidade de uma mão
de Jeová. Fios de sol escorriam de uma azinheira perto da estrada. Os campos repousavam
no grande e plácido Outono. E pelo vasto céu azul, sem a mancha de uma nuvem,
ecoava levemente a última memória de Verão. Moura pôs o motor a trabalhar.
― Então passe muito bem ― disse ao
semeador.
E o carro arrancou, erguendo o pó do
caminho.
Mas a visita à doente foi breve. Era uma
casa fidalga perdida no descampado. Espectros de um ou outro homem ou mulher
olhavam-me no carro parado, olhavam o silêncio em redor. Regressámos enfim pelo
mesmo caminho. Quando, porém, chegámos ao monte do semeador, saltou-nos à
frente um grupo de pessoas numa sarilhada de gritos, de imprecações, braços no
ar, braços apontados para uma loja. Moura saiu do carro e o magote de gente
seguiu-o. Fiquei só. Mas o médico regressava daí a pouco, pálido,
transtornado.
― Que aconteceu?
Ele não respondeu logo, conduzindo o
carro aos tropeções. E só quando o monte
se não via já me declarou:
― O homem enforcou-se.
Vergílio Ferreira (1994). Aparição, 41.ª edição. Lisboa: Bertrand Editora, pp. 60-63.
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