Um orador alemão fala para uma
sala em que metade são alemães e uma parte portugueses. Quando diz uma piada,
metade da sala ri-se. O intérprete fica sob pressão: se não conseguir fazer
passar a mensagem com a mesma graça, e a outra metade da sala não se rir, vai
ser óbvio que há algo que se perdeu, uma falha na comunicação. Quando fala, a
metade portuguesa da sala ri-se. Ele pode ficar descansado.
Já
aconteceu a Francisco Falcão e é dos momentos que considera mais desafiantes na
interpretação – mesmo no Parlamento Europeu (PE), uma instituição que muitos
não associarão a humor. “Mas há momentos de humor, sim”, diz o chefe de unidade
portuguesa da Direcção-Geral de Interpretação de Conferências do PE, com o seu
modo de falar calmo. “Pode ser sarcasmo, ironia, um pequeno remoque. E
encontrar uma expressão que seja fiel ao espírito do orador – pode não ser
textual, mas que corresponda – já é um grande desafio, e gosto disso.”
Há
uma história que circula entre os intérpretes de alguém que, vendo-se sem saída
numa situação destas, com um trocadilho intraduzível e inexplicável em tempo
útil, encontrou uma solução. Disse apenas: “Agora riam-se.” A sala riu-se, a
comunicação não ficou interrompida. “A interpretação é baseada na confiança e
se há uma parte da sala que está a rir e outra parte que não está...”
Outro
desafio é a emoção. Lembra por exemplo quando Malala Yousafzai, a jovem
paquistanesa que quase morreu num ataque dos taliban por ter desafiado a ordem
de que as raparigas não podiam ir à escola, recebeu o Prémio Sakharov. “O
depoimento, apesar de tranquilo, era muito emotivo. O meu primeiro objectivo é
passar a mensagem, e controlar a minha emoção”, nota.
Francisco
Falcão traduz de espanhol, francês, inglês, alemão, neerlandês e sueco para
português (sempre para português – no PE, o princípio é de que se interprete
sempre para a língua materna).
“Curiosamente,
espanhol foi a última língua que acrescentei.” Porque para interpretar não
basta conhecer uma língua. “É preciso conhecer a estrutura do país, saber
também cultura, isso é que nos ajuda a um bom trabalho”, sublinha. “Há vários
níveis de conhecimento que exigem estarmos muito actualizados. Antes, o
intérprete consumia muito papel, agora consome muita Internet para saber quais
são os temas de actualidade.”
É que
falar uma língua não é só falar uma língua: “Cada vez que se aprende uma
língua, descobre-se outro mundo, outra forma de ver as coisas.”
No seu
dia-a-dia, faz sobretudo interpretação em cabina, e, como chefe de unidade,
gere uma equipa de intérpretes. A maior parte do tempo em Bruxelas, uma semana
por mês em Estrasburgo, as duas sedes do PE. Começou a trabalhar como
intérprete no Parlamento Europeu em 1994 como freelancer, como funcionário
em 2000 e chefe de unidade em 2009, enumera.
Também
explica que um dos maiores mal entendidos em relação à interpretação é que as
pessoas acham que se traduz palavra a palavra. “Não, o intérprete fala mal haja
uma unidade de sentido”. É um trabalho muito exigente “porque estamos a fazer
algo que não é natural – ouvir e falar ao mesmo tempo”. O grau de concentração
exigido é muito grande, e por isso o tempo máximo de interpretação é de 30
minutos e os intérpretes vão-se revezando. Isto na interpretação mais comum, a
simultânea, feita em cabinas, na sala – “estamos presentes mas não estamos”.
É o
grosso do trabalho do intérprete, embora também haja ocasiões em que é feita
interpretação sucessiva – “alguém faz um discurso, o intérprete toma notas e
reproduz noutra língua” – ou chuchotage ou sussurrada – “alguém está
fisicamente presente entre duas pessoas e faz passar a mensagem: acontece em
reuniões de alto nível, quando se vêem dois chefes de Estado e alguém atrás de
um deles a sussurrar.”
Primeiro
Interrail em 1977
Francisco
Falcão sempre gostou de viajar e conhecer mais línguas e mundos. Em 1977, “com
16 anos e meio”, fez o seu primeiro Interrail. “Vinha de uma cidade de
província (Santarém) e, quando soube que havia aquilo – tinha acabado de ser
lançado –, pensei: ‘Eu quero fazer isto’ e juntei as minhas mesadas todas e
fui.” O objectivo era chegar à Finlândia, “porque tinha conhecido uns
finlandeses num festival de folclore em Santarém e achei aquilo tudo tão fascinante,
tão diferente, que pensei: ‘Quero ver e conhecer isto’. E meti-me no comboio e
fui naqueles comboios todos até à Finlândia. E não era nada de namoro nem nada,
era mesmo ser diferente.”
Depois
deste, seguiram-se muitos outros Interrails, e quem sabe não se seguirão mais:
“Sei que há Interrail a partir dos 65 anos. Quando tiver, vou fazer de novo,
com certeza. Interrail sénior, já não falta assim tanto quanto isso”, brinca.
Apesar
de todas estas diferenças que o fascinaram desde cedo, Francisco Falcão defende
que há uma identidade europeia: “Nós somos europeus, independentemente de
sermos desta ou daquela nacionalidade – e somos, eu sou português, sinto-me
completamente português, e estou em Bruxelas e não sou belga, nem de Bruxelas.
Mas cada vez que vamos para outro continente, mesmo para os Estados Unidos,
somos completamente europeus.” “O facto de estarmos unidos não quer dizer que
tenhamos de ser homogéneos. É uma riqueza tão grande.”
Desfaz
o mito de que com 28 membros, a parte da interpretação no Parlamento Europeu se
tornou muito complicada. “Já quando entrou Portugal e Espanha se dizia isso,
que a estrutura não aguentava mais línguas. E sempre que vem uma nova vaga
diz-se o mesmo. Mas é uma questão técnica apenas. Complexa sim, mas apenas técnica.”
São mais de 300 intérpretes a tempo inteiro para que cada eurodeputado tenha a
possibilidade de se expressar na sua língua materna. “Às vezes, fala-se do
inglês como língua franca. Mas eu, em qualquer língua que não seja a minha,
digo o que posso e não digo o que quero”, o que pode ser uma grande desvantagem
– “a capacidade de persuasão pode ser posta em causa.”
Já
houve outras crises
Nos
seus 20 anos de trabalho no Parlamento Europeu, Francisco Falcão acompanhou a
construção europeia, “na fila da frente, não como actor, como espectador”. E
isso permite-lhe responder à pergunta: “O que é que já fizemos?”: “Já fizemos
muito. Estive em reuniões em que se discutiu a reunificação alemã, a integração
da Eslovénia antes dos outros países da ex-Jugoslávia. A adesão dos países que
chamaram o ‘big bang’, tudo isso é importante. O caminho que foi feito é
enorme”. Também já houve outras crises: “Nos anos 1960, a crise foi enorme, a
França, por causa dos seus interesses na agricultura, teve a política da cadeira
vazia. Há momentos de crise, mas a integração europeia é feita disso.
Em
momentos como o actual, “há crispação”, admite, “e temos tendência a apresentar
uma visão redutora do outro e simplificar – os países do Sul e os do Norte, os
protestantes e os católicos…” enumera. “Mas temos de ler mais longe: em que foi
baseado este projecto? Não há mais guerra entre nós. Esquecemos um pouco isso.”
Há
desilusão, e desilusão tem-se traduzido numa subida de partidos eurocépticos,
cuja representação neste próximo Parlamento Europeu deverá ser a maior de
sempre. “Termos pessoas que são contra o projecto europeu dentro do Parlamento
é uma coisa contraditória”, diz Francisco Falcão. “É uma novidade, até agora
eram residuais. Como intérprete, apenas posso assistir.”
Como
assistiu a muitos momentos históricos. Mas Francisco Falcão, a voz pausada, não
vai mais nervoso nesses dias. “Não… não. Sentimos é que estamos a participar em
qualquer coisa importante.” Para além da presença, um contributo. Porque a
União Europeia, repete, “é um projecto de paz, de entendimento, é um projecto
em que os conflitos – que há sempre – se resolvem pelas palavras, pela
concessão, aqui e ali, pela negociação.” E os intérpretes trabalham justamente
aqui: “Ao passarmos as palavras estamos a criar entendimento e a evitar o
conflito, no fundo, é isso. É obviamente um contributo muito modesto, mas é
isso.”
Esta é a última de onze paragens na Europa que vai a votos.