O Repórter
Todo o mundo é imperfeito, mesmo redacção de jornal. Em trinta fatigantes anos de ofício, Roseiral foi a única reportagem de Cacildo Tavares alheia à sua especialidade: desastres. Repórter de tanta tarimba, jornalista de pena leve, e não o sobem aos altos temas, artigos requerendo experiência e ponderação. Só desastres. Má vontade, vexame e, como se não bastasse, sempre o azar pendurado à perna. […]
Bom,
cheguei ao local do sinistro. Quantas vezes, na minha longa carreira, escrevi
eu «local do sinistro»? No mínimo duas páginas em corpo sete, só para locais de
sinistros. Espreitei o carro espalmado debaixo do camião.
Tiraram
gente?
Dois,
disse o bombeiro.
Dois,
aponto. O número é que varia. Mas dois ou quatro, os corpos são retirados de uma
amálgama de ferros torcidos. Escrevo: «Amálgama de ferros torcidos», a caneta
já vai sozinha, é como desenhar a assinatura. Compreende: são anos e anos de
amálgama de ferros torcidos. E a caneta vai por aí fora, adiantando-se às
informações: «ao fazer uma ultrapassagem...»
Foi
ultrapassagem, não foi?
Fatal
como o destino, confirmou o bombeiro.
E
do «violento embate resultou...» Violento embate, desnecessário perguntar.
Basta ver a amálgama de ferros torcidos.
Morreram
os dois?
Logo.
Pois:
«do violento embate resultou a morte imediata do condutor e do seu
acompanhante».
Penso:
mil vezes, já escrevi esta notícia mil vezes. Diferente, só o local do sinistro
e a identidade das vítimas. E isso que importa aos leitores do jornal?
Interessa às famílias, coitadas, cabe às autoridades a informação.
Há
por aí uma autoridade?, reclamei.
Diga,
ofereceu-se o republicano.
Já
se conhece a identidade das vítimas?
Vá
à morgue, talvez lá.
Vá
à morgue, a conversa dele! E o tempo? Jornal tem horas, a partir das tantas
todo o chefe é histérico. Boa vida na redacção. Ele há colunista, colador de
telegrama, telefonador para todo o sítio, legendador de fotografias, subchefe,
chefe, superchefe, maxichefe. E fora, no picanço, quem? Cacildo Tavares,
repórter de desastres.
Ó
sô guarda, o carro ia na esgalha, não?
A
uns cento e sessenta.
Evidente:
«lançado a louca velocidade...» E o motorista do camião? Ferido?
Nada.
Foi ao hospital mas era só nervoso, disse o guarda.
Claro:
«vítima de forte comoção, o motorista do veículo pesado recebeu assistência no
estabelecimento hospitalar mais próximo, recolhendo depois a casa». Recolheu?
Não
o vejo por aí.
Então
recolheu. Depois disto, o homem não ia ao cinema. Bem, só me falta a
identificação dos sinistrados. A chapinha do carro: não tem nome lá?
Qual
carro, um monte de sucata.
Bem
vejo: uma amálgama de ferros torcidos.
Olhei
as horas: nove e meia, já? [...]
Ó
sô guarda, vou indo, jornal às tantas fecha. Importa-se de me telefonar logo
que conheça a identidade das vítimas? Pronto, agradecido. Não acrescenta nada,
claro, cem mil leitores querem lá saber se eram Manuel ou Alfredo, Timóteo ou Ezequiel.
Mas são as regras: quem, onde, quando, o quê e porquê, está a compreender?
Zambujal, Mário (1986). “O Repórter”. In À Noite Logo se Vê. S. l.: Círculo de Leitores, pp. 39-42.
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