sexta-feira, 31 de maio de 2013

Mário Zambujal

O Repórter


Todo o mundo é imperfeito, mesmo redacção de jornal. Em trinta fatigantes anos de ofício, Roseiral foi a única reportagem de Cacildo Tavares alheia à sua especialidade: desastres. Repórter de tanta tarimba, jornalista de pena leve, e não o sobem aos altos temas, artigos requerendo experiência e ponderação. Só desastres. Má vontade, vexame e, como se não bastasse, sempre o azar pendurado à perna. […]

Bom, cheguei ao local do sinistro. Quantas vezes, na minha longa carreira, escrevi eu «local do sinistro»? No mínimo duas páginas em corpo sete, só para locais de sinistros. Espreitei o carro espalmado debaixo do camião.
Tiraram gente?
Dois, disse o bombeiro.
Dois, aponto. O número é que varia. Mas dois ou quatro, os corpos são retirados de uma amálgama de ferros torcidos. Escrevo: «Amálgama de ferros torcidos», a caneta já vai sozinha, é como desenhar a assinatura. Compreende: são anos e anos de amálgama de ferros torcidos. E a caneta vai por aí fora, adiantando-se às informações: «ao fazer uma ultrapassagem...»
Foi ultrapassagem, não foi?
Fatal como o destino, confirmou o bombeiro.
E do «violento embate resultou...» Violento embate, desnecessário perguntar. Basta ver a amálgama de ferros torcidos.
Morreram os dois?
Logo.
Pois: «do violento embate resultou a morte imediata do condutor e do seu acompanhante».
Penso: mil vezes, já escrevi esta notícia mil vezes. Diferente, só o local do sinistro e a identidade das vítimas. E isso que importa aos leitores do jornal? Interessa às famílias, coitadas, cabe às autoridades a informação.
Há por aí uma autoridade?, reclamei.
Diga, ofereceu-se o republicano.
Já se conhece a identidade das vítimas?
Vá à morgue, talvez lá.
Vá à morgue, a conversa dele! E o tempo? Jornal tem horas, a partir das tantas todo o chefe é histérico. Boa vida na redacção. Ele há colunista, colador de telegrama, telefonador para todo o sítio, legendador de fotografias, subchefe, chefe, superchefe, maxichefe. E fora, no picanço, quem? Cacildo Tavares, repórter de desastres.
Ó sô guarda, o carro ia na esgalha, não?
A uns cento e sessenta.
Evidente: «lançado a louca velocidade...» E o motorista do camião? Ferido?
Nada. Foi ao hospital mas era só nervoso, disse o guarda.
Claro: «vítima de forte comoção, o motorista do veículo pesado recebeu assistência no estabelecimento hospitalar mais próximo, recolhendo depois a casa». Recolheu?
Não o vejo por aí.
Então recolheu. Depois disto, o homem não ia ao cinema. Bem, só me falta a identificação dos sinistrados. A chapinha do carro: não tem nome lá?
Qual carro, um monte de sucata.
Bem vejo: uma amálgama de ferros torcidos.

Olhei as horas: nove e meia, já? [...]
Ó sô guarda, vou indo, jornal às tantas fecha. Importa-se de me telefonar logo que conheça a identidade das vítimas? Pronto, agradecido. Não acrescenta nada, claro, cem mil leitores querem lá saber se eram Manuel ou Alfredo, Timóteo ou Ezequiel. Mas são as regras: quem, onde, quando, o quê e porquê, está a compreender?



Zambujal, Mário (1986). “O Repórter”. In À Noite Logo se Vê. S. l.: Círculo de Leitores, pp. 39-42.


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