“Nestas lutas, que descambavam em caça ao homem,
emboscadas e crimes de fogo posto, os partidos perderam todo o sentido da
medida. Cedo se ficou com a impressão de que eles já mal se consideravam entre
si como homens, semeando-se a sua linguagem de palavras ordinariamente só
aplicadas aos parasitas, que importa a todo o custo destruir e exterminar pelo
fogo. Só sabiam reconhecer o crime no campo oposto, pelo que era entre eles
honroso o que no adversário era abjecto. Enquanto cada um considerava os mortos
dos outros quanto muito dignos de ser enterrados de noite e às escuras, deviam
os do seu campo ser envoltos no lençol de púrpura, devia ressoar o eburnum em sua intenção e subir nos ares a
águia, levando até aos deuses a imagem viva de heróis e profetas.
Em
boa verdade, nenhum dos grandes cantores, por mais que os aliciassem a peso de
ouro, se dispôs a participar em semelhante profanação. Dirigiram-se então
aqueles aos harpistas, que tocam nos bailes das romarias, e aos citaristas
cegos que, diante dos triclinia dos lupanares, alegram os embriagados
clientes com canções sobre a concha de Vénus e sobre o Hércules glutão.
Campeões e bardos eram, pois, dignos uns dos outros.
É bem
sabido, no entanto, como o metro é incorruptível. Os fogos da destruição não
alcançam as suas colunas e os seus portais invisíveis. Não há vontade que se
imponha à harmonia, e não passam assim de vigaristas que se defraudam a si
próprios os que presumiam poder comprar oferendas sacrificiais com a dignidade
do eburnum. Assistimos
apenas à primeira destas exéquias, e tudo se passou exactamente como tínhamos
previsto. O mercenário, de quem se exigia estivesse à altura sublime e ígnea
matéria do poema, não tardou a gaguejar e a atrapalhar-se. Mas logo recuperou a
fluência servindo-se dos iambos abjectos do ódio e da vingança, que sibilavam
no pó. Presenciando este espectáculo, víamos a multidão ostentando as túnicas
cor de púrpura que se envergam para o eburnum,
e também os magistrados e o clero com as vestes talares. Outrora, quando a
águia se elevava nos ares, fazia-se silêncio; agora, deu-se uma explosão de
júbilo selvagem.
[…]”
Ernst Jünger (1988). Sobre
as falésias de mármore.
Lisboa,
Veja, p..
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